28 de novembro de 2007

Regimento do Regatas

Dias atrás, li algumas páginas do regimento interno do Clube de Regatas Saltense, impressas em 1939 pela Spröesser & Cia., em Salto, num formato [16 x 12 cm] que me lembrou as antigas cadernetas de padaria, que ainda sobrevivem em alguns lugares. Pequenas publicações deste tipo, com ligeiras variações, existem para outras entidades e clubes saltenses fundados na primeira metade do século XX, hoje quase todos extintos.

O Clube de Regatas Saltense utilizava-se, para suas práticas esportivas, do último trecho do rio Jundiaí, descrito como área esportiva, situada “entre a ponte do Rio Jundiaí e a ponte da E.F.S. [Estrada de Ferro Sorocabana], e de cada lado confinando com uma linha reta imaginária, traçada da margem esquerda do Rio Tietê à ponta da margem direita do Rio Jundiaí”. Essa área esportiva, eventualmente, poderia “ser ampliada (...) de acordo com o parecer do diretor esportivo [que na data de impressão do regimento era Raphael Mugnai]”.

As disposições iniciais são sobre os esportes praticados: remo e natação. Acerca do remo, os artigos tratam do uso do barracão [hoje apenas um terreno murado na rua Marechal Deodoro, à venda], em especial estabelecendo os seus horários de funcionamento “para retirada das embarcações”. Os tripulantes eram apenas os sócios inscritos e autorizados pelo diretor esportivo, e se tornavam “responsáveis pelas avarias ocorridas nos remos ou barcos” que utilizassem. Alguns termos próprios do esporte surgem nos artigos 4º e 5º: patrão [nos barcos de regata, aquele que dirige o leme e comanda o ritmo das remadas] e guarnição [o conjunto dos remadores dum barco]. O lazer com os barcos obedecia a um limite estreito: “Fora das representações, nenhuma guarnição (...) [poderia] utilizar-se dos barcos por mais de meia hora, sem prévio consentimento do diretor esportivo”.

A natação não era permitida “aos menores de 16 anos que, embora sócios contribuintes,” não estivessem “devidamente autorizados pelos seus pais ou responsáveis”. Entre os nadadores maiores de 16 anos, permitia-se “dar caldo [mergulho forçado que, geralmente por brincadeira, se dá em quem está nadando]”. Trata disso o artigo 13º, proibindo tal prática entre os menores de 16, fossem “sócios ou aspirantes”. Vetava-se também “atirar pedras, barro, etc.”.

Há, por fim, três outros aspectos interessantes. Dois deles ainda resistem fisicamente como referenciais da memória do uso de nossos rios enquanto lugar de lazer: o escorregador [chamado no documento de water-shoot] e o trampolim. Sobre o primeiro, destinado “a brinquedos individuais ou coletivos” devia-se “ter especial cuidado, a fim de evitarem desastres ou ocorrências desagradáveis”. Embora estivesse ao alcance de qualquer transeunte, como ainda hoje permanece, era “expressamente proibido subir à plataforma do water-shoot sem uniforme ou sem o traje permitido aos remadores”, conforme o artigo 39º mencionava. Já sobre o uso do trampolim, o sócio deveria observar o “perigo de se lançar sobre os nadadores ou remadores [que estivessem], no momento, próximos do trampolim”. Também não era permitido “permanecer [no trampolim] só ou em grupos (...), impedindo, desse modo” os que desejassem dele saltar.

O terceiro aspecto peculiar era o cocho – plataforma de madeira que boiava graças a tambores vazios a ela amarrados, destinada “ao aprendizado da natação”. Sair dessa espécie de cercado semi-imerso na água era proibido aos “aprendizes que não (...) [tivessem] autorização do diretor”. Proibia-se ainda a permanência no cocho de sócios que soubessem nadar, quando nele estivessem aprendizes. Peculiar é o artigo 35º, que proíbe “brincadeiras inconvenientes no cocho, quando os aprendizes, homens ou mulheres, nele” estivessem. Nesse rol de preocupações, tampouco se permitia “fazer do cocho trampolim, subir nos tambores, permanecer nas grades e no pranchão e praticar quaisquer atos que (...) [pudessem] danificá-lo”.

21 de novembro de 2007

Agenda 1944

“Agenda Siqueira para 1944 – a mais completa”. Eis o slogan presente no suporte escolhido por Luiz Castellari [1901-1948] para coligir – palavra hoje fora de moda – uma série de pequenas informações sobre o passado da cidade de Salto. O autor de História de Salto, livro publicado postumamente em 1971, no que suspeito ter sido um trabalho de não mais de 3 anos, reuniu e organizou, por dia de ocorrência, seguramente mais de mil acontecimentos de alguma forma relacionados à sua terra, e que ele julgou relevantes, representativos ou meramente curiosos.

Ao rechear de dados a referida agenda, estou seguro de que Luiz não tinha a pretensão de tecer, naquele momento, qualquer análise envolvente sobre o passado local. Queria mesmo era coletar o maior número de informações sobre sua Salto, com um critério não muito bem definido. Encontrou numa agenda comercial, num volume longilíneo, no qual ele procurou escrever com letra miúda, a forma mais adequada para se organizar. No papel amarelado que a envolvia, e dele só nos resta uma parte, ainda se lê manuscrito: “Efemérides da cidade de Salto coligidas por Luiz Castellari”. Nos papéis avulsos encontrados em meio às páginas, algumas pistas sobre a forma e os fins da coleta de dados, que devia ser não mais que um passatempo daquele saltense. Um compulsivo passatempo, talvez...

Temos a informação de que os dados compilados e o texto presente no livro História de Salto são de abril 1942. Apresentação, biografia e conclusão presentes na edição de 1971 atestam isso. Contudo, alguns dos papéis avulsos em meio ao volume – a parte mais instigante – trazem anotações do tipo “na História alterar a data de fundação [por Barros Júnior] do Clube 14 de Julho para 1889”. No conhecido livro de Castellari, página 76, se encontra a data de 1887 para a tal fundação. Na página correspondente da agenda, há rasura: um nove sobre um sete. Pode-se afirmar com segurança, portanto, que a peculiar agenda era ao menos parte de um trabalho de revisão de sua obra então já completa, mas não editada em vida.

Um dos pecados cometidos por Luiz é o de não citar a fonte dos dados que arrola. Pode-se inferir, em alguns casos, através da natureza da informação, o possível local de saída da mesma. Isso não diminui o valor de seu trabalho, de raro senso. O retorno aos arquivos, tão em voga na academia, parece ter sido sua principal diretriz. Cito a seguir, mantendo a forma, dois fragmentos da Agenda de 1944, sendo o primeiro proveniente de um papel avulso nele encontrado e o segundo de uma de suas páginas:

“Diário Popular de 16 Setembro 1889
A fábrica do Galvão iniciada em 1871
funcionou em 1875 com 126 teares, 180 operários
5 a 6000 metros de pano diário
do Barros [Júnior] 77 teares 120 operários 4 a 5000 m pano dia
Pereira Mendes e Cia. funcionou em 1886 97 teares 100 operários
fábrica papel 40 operários
total população operária de 4 fábricas em 1889 inclusive avulsos 470 operarios”

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“27 de julho
1829
A Câmara de Itu aprova a seguinte tabela de preços, sobre as passagens na Ponte do Salto ‘o pedrestre, o animal descarregado, a tropa carregada de 10 pª cima, e a tropa bravia, e boiada de 20 para cima pagassem dez rs. p. cada indivíduo; o cavaleiro, e o animal carregado 20 rs.; a tropa mansa de 10 para cima, sendo descarregada, 5rs. cada animal; que pagassem os carros 640 rs. e sem carga 200 rs., exigir que os carros fossem conduzidos só p. 4 bois, pagando-se a 40 rs. cada junta excedente; proibindo o trânsito das madeiras arrastadas para carretões podendo somente passarem levantadas pelo preço dos carros com carga, pagando os carretões descarregados 120 rs., é exigido chave no dito Portão da Ponte, e no qual se escreverá os preços, eleger-se um cobrador dando-se-lhe quartel, 320 rs. diários, e dois soldados milicianos com o soldo costumado no destacamento da Capital, e que suspenda a cobrança dos que passam por tábuas na parte incompleta’.”


Uma das páginas da Agenda 1944
Acervo do Museu da Cidade de Salto

10 de novembro de 2007

O acaso

Dias atrás, veio-me como retorno de uma carta-resposta, que preenchi descrente, na qual eu, enquanto professor, teria direito a escolher um livro do catálogo que vinha junto com a mesma carta. Escolhi A imigração italiana no Brasil, de João Fábio Bertonha [Ed. Saraiva, 2004], livro simples, para o público escolar. Era o que, numa rápida passada de olhos, me parecia útil num futuro próximo. Ao abrir o livro, eis que em uma de suas páginas centrais deparo-me com uma foto muito familiar. Aliás, é a mesma que uso no plano de fundo de meu desktop, por invocar uma série de reflexões. Vejo os créditos da foto no livro: Memorial do Imigrante. Não era, portanto, a mesma fonte que a minha, digitalizada a partir de original do acervo Museu da Cidade de Salto, sendo doação de uma década atrás. Constatei então que, positivamente, havia cópia da mesma imagem de Salto em outro acervo.

Sabemos da forte presença da colônia italiana em nossa cidade no início do século passado. O fato do Memorial do Imigrante possuir a mesma imagem nos leva a algumas considerações. Por enquanto, escrevo sobre isso apenas para partilhar o meu espanto com a coincidência de pedir justo aquele livro, abrir como primeira página aquela e utilizar, neste momento, a mesma foto como plano de fundo. O tradicional seria tratar do tema que a foto ilustra, simplesmente exibindo-a como janela para o passado, de forma até simplória. É o que mais se vê por aí. Contudo, arrisquemos a pensar a história da foto, e não apenas na história do que a foto retrata. Quem fotografou esta cena, por que escolheu este ângulo e para quem executou tal tarefa, já que há igual fotografia no referido Memorial, antes Hospedaria dos Imigrantes?



Operários da Brasital com o prédio da fiação ao fundo, c.1920
Acervo do Museu da Cidade de Salto

Manuscritos

No espaço hoje inaugurado, pretendo tratar não somente de história. Por força do ofício, é neste campo que me sinto menos inseguro para escrever. Aos que questionarem a validade de se abordar determinados conteúdos do passado - o que é comum entre os utilitaristas - valho-me da indagação do historiador francês Marc Bloch [1886-1944]: “Se a história, não obstante, para a qual nos arrasta assim uma atração quase universalmente sentida, só tivesse isso para se justificar, se fosse apenas, em suma, um amável passatempo, (...), valeria a pena todo o esforço que fazemos para escrevê-la?” A título de exercício, acreditemos que história serve apenas para entreter e pronto. Se não válido, o argumento é prático. Vai além de afugentar parcialmente quem indaga sobre a validade de se tratar do passado. Como complemento ao despacho, há sempre uma indicação de leitura possível - e que o questionador vá saber sobre sem muito importunar. Com todo o respeito: vá ler. Pois seria este exatamente o fim último da história, por nosso raciocínio estreito: entreter pela leitura. Mas se a paciência é necessária para escrever, quem dirá para ler! Peço paciência dos leitores. Poucas são as pessoas capazes de entreter verbalmente. Aos demais, resta escrever. Escrita curta, como curtas são as notas que seguem, com a dita pretensão de entreter, que não é simples.

À procura de algo original sobre o passado desta cidade, recorri a fontes primárias do final do século XIX e início do XX. Documentação policial, mais propriamente da Subdelegacia de Salto. Citar a fonte é vital: fazem parte do acervo arquivístico do Museu da Cidade. Um dos subdelegados da época era Barros Júnior [1856-1918], um dos industriais pioneiros de Salto. A alternância de subdelegados, num curto período, era recorrente. Como trabalhei durante um ano com documentação policial do Rio de Janeiro no início do XX, sempre tive curiosidade, ingênua, de ler documentação semelhante daqui de Salto. As poucas notas que nos legaram, proporcionais à realidade local daqueles tempos, são de um sabor relativo se comparadas com as cariocas, mas interessantes para quem se envolve com a História local vinda de baixo [aquela que sabiamente inclui as pessoas comuns], em especial aos que procuram mero entretenimento. Trago abaixo alguns trechos dessa documentação.

Iniciemos por uma dose de estrutura funcional. 22 de janeiro de 1902. “Nesta Villa do Salto de Ytú”, na casa do delegado de polícia em exercício, João Galvão Pacheco, o escrivão João Baptista Sampaio anotava um “termo de compromisso” na página 4 do livro aberto exclusivamente para registrar os tais termos da “Delegacia da Villa do Salto”. Tratava-se da nomeação de João Paulino Mendes da Silva para o cargo de “carcereiro interino durante a suspensão do cidadão João Baptista Honorio, por motivo de abuso e relaxo do seu serviço”. Os possíveis fatos causadores da suspensão mencionada não estão relatados.

Pelas três páginas anteriores do mesmo livro, aberto em janeiro de 1901, pode-se fazer um breve mapeamento dos cidadãos envolvidos com as funções policiais daquele ano inicial do século XX. O primeiro dos termos de compromisso, de 19 de janeiro, anotado pelo escrivão ad hoc Paulo Carneiro, justamente nomeava João Baptista de Sampaio como escrivão da “Delegacia de Polícia d’esta Villa”. Na ocasião, o delegado era Julio Pires da Silva. Em 21 de março, comparecia a casa deste último Antonio Fernandes da Silva, que por sua vez “prestou compromisso legal do cargo de 3º supplente do Delegado de Polícia desta Villa”. Nesse momento, já era escrivão o referido João Baptista de Sampaio.

“Aos seis dias do mez de Abril de mil e novecentos e um, nesta Villa do Salto de Ytú”, na casa do delegado Julio, compareceu “o cidadão Francisco de Paula Nicacio e prestou o compromisso legal do cargo de inspetor de quarteirão do Bairro do Burú”. Nicacio “declarou acceitar o referido cargo e ser fiel aos cumprimentos dos seus deveres”. Nicacio cederia seu posto a Delfino Leite de Barros em 24 de agosto de 1901. Nomeações semelhantes ocorreram para outras localidades rurais de nossa Salto, como com Elias Augusto Bueno, nomeado em 11 de abril como inspetor de quarteirão do “Districto da Conceição”, e Ignacio Dias Aranha, para o distrito de Urucanga. Os inspetores de quarteirão eram representantes da polícia em povoados afastados dos centros urbanos. Eram eles os responsáveis pela manutenção da lei e da ordem na região para a qual eram designados - a mesma em que habitavam -, abrindo brechas para reafirmação de poderes e instauração de mandonismos locais.

Não apenas questões burocráticas aparecem nessa documentação policial. Voltando ao século XIX, leio uma ocorrência que nos aponta para um tema recorrente no cotidiano saltense desde tempos remotos: o rio enquanto assassino. Segue a transcrição literal, com termos e grafia originais, como acima:

“Aos 27 vinte e sete [sic] dias do mez de Outubro de anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil oito centos e oitenta e nove, nesta villa em a casa da Rua do Porto, as nove horas das manhã, presente o subdelegado em exercicio Paulo Pereira Mendes commigo escrivão de seu cargo abaixo assignado e as testemunhas, ahi estava o cadáver de Joaquim Alves de Oliveira que foi trasido do lugar denominado Areão no rio Tietê, onde havia fallecido de asphixia por submersão na occasião em que tomava banho. Do enterrogatorio feito aos seus companheiros resultou o seguinte: ser o fallecido cidadão Portugues, natural de Vila Nova de Gaia, de vinte e cinco annos de idade, casado na mesma cidade, tem dois filhos e é carpinteiro de profissão e chegou ao Brazil a trez mezes, mais ou menos, como consta do passaporte datado de vinte e seis de Julho do corrente anno. Nada mais havendo a declarar encerro este termo que commigo assigna o subdelegado e as testemunhas Francisco Laprega, João Monteiro de Arruda e Elisiano Torres. Eu João da Costa Coimbra escrivão da subdelegacia o escrevi.
João da Costa Coimbra”


"O AREIÃO", 1991
Lydia Dotta Lobo
Óleo s/ tela
50 x 80 cm
Acervo particular Valter Rossi

[Publicado originalmente no Jornal Voz da Cidade (Salto, SP), em 03.11.07]

Ouça o hino da cidade, "Salto Canção", na gravação de 1966