2 de setembro de 2017

Monsenhor Mário Negro (1922-2006)

Texto de Valderez Antonio Bergamo Silva, publicado originalmente no jornal Taperá, em 2006.


MONSENHOR

Era o meu modelo de padre. Porreta e da pá-virada.

Certa vez, precisei telefonar-lhe para combinar detalhes sobre uma cerimônia da Semana Santa em praça pública. O carnaval tinha passado fazia poucas semanas e eu, na época dirigente de cultura da cidade, havia mandado decorar a rua dos desfiles com grandes painéis que evocavam os orixás do candomblé, em homenagem aos cem anos da abolição da escravidão e às raízes africanas do povo brasileiro. Lembrei, depois, que o padre talvez não tivesse gostado muito e, diplomaticamente, expliquei por que era uma referência cultural legítima, uma homenagem a uma das vertentes da formação brasileira, coisa e tal. Disse que ele tinha “um coração compreensivo”  e que certamente tinha entendido a razão dos enormes desenhos de Iemanjá, Iansã, Ogum, Oxalá, pairando no centro da cidade. Ele pegou o gancho da minha fala e me devolveu a espetada pelo telefone:

- Claro, o coração do padre é tão compreensivo que vira  terreiro de macumba.

Esse homem direto, franco, freqüentemente rude, foi Mário Negro, o padre da minha infância, o monsenhor de minha cidade natal, o amigo querido que fui a sepultar, dias atrás.

Quando chegou à cidade, no final dos anos 1960, criou o hábito que, em seu funeral, todos os de minha geração cuidavam de lembrar. Nas manhãs de domingo tomava de um tambor, um bumbo, e saía pelas ruas da cidade arrebanhando a garotada para a chamada Missa das Crianças. Depois de percorrer ruas a fio, o cortejo – que lembrava o flautista de Hamelin, da lenda medieval do homem que hipnotizava meninos com o toque da flauta – chegava à frente da Igreja Matriz. Fazia, então, as crianças seguirem em fila, pisando criteriosamente uma fita pregada no chão, até se acomodarem nos bancos para assistirem à missa. Ficou também, na memória da cidade, como o homem que, num descuido, despencou do campanário da igreja, estatelando-se no duro chão de pedra do adro. E sobreviveu. Homem de peripécias curiosas, houve o episódio em que viu-se enganado por uma trupe de cinema, que o convenceu a fazer uma ponta como ator, celebrando um casamento numa dada cena do filme que se rodava na cidade. Só depois da estréia, a pequena cidade – e o padre, inocente – viram tratar-se de um filme pornográfico dos que surgiam na época.

Haverá, certamente, quem prefira lembrá-lo como o homem turrão e genioso, que bronqueou com beatas, implicou com isto e aquilo, brigou com o prefeito, desafiou até o bispo. Eu o vejo como fruto perfeito da Igreja, naquilo que ela efetivamente é: feita de homens; não de anjos. A Igreja militante e peregrina, santa justamente porque só se torna possível à custa de aprendizados, marchas, erros, acertos, martírios e sofrido exercício da fé. O sacerdote octogenário que minha cidade perdeu foi o homem sabedor dos limites do homem. Aquele, bem-humorado, que ministrava uma palestra em minha escola, quando o conclave de cardeais se reunia para escolher o sucessor do recém-falecido papa Paulo VI. Mário Negro explicava aos jovens que o Espírito Santo é quem escolhe o papa, e que, em tese, não precisava ser um cardeal, poderia ser qualquer um, até ele. Quando, com deliciosa malícia no sorriso, acrescentou: - Esse risco, porém, não existe, porque Deus não comete besteiras.

Mário, que me lembrou Pedro, o pescador, como eu quis dizer na oração fúnebre junto a sua sepultura. O Pedro também teimoso, carregado de dúvidas e erros, de humanidade profunda, a quem Cristo perguntou por três vezes: Pedro, tu me amas ? E, ao ouvir a resposta positiva do apóstolo, então, por três vezes pediu: - Apascenta as minhas ovelhas.

As ovelhas o padre de minha infância apascentou daquele modo, arrebanhando-as meninas pelas ruas da cidade. Ou comovendo-se até às lágrimas, numa voz soluçante de homem, quando se inflamava na pregação da Descida da Cruz. Cuidou do seu rebanho quando bradava, numa empolgação inigualável, acolhendo nas escadarias da igreja, por mais de trinta anos, a procissão e o andor da Senhora do Monte Serrat, padroeira da terra onde foi missionário infatigável. E ainda na infalível disposição em atender os moribundos, em encomendar as almas segundo seu credo, em consolar as famílias chorosas, em ter oficiado missa mesmo na manhã do seu último dia de vida. Combateu o bom combate, a que alude o apóstolo Paulo, guardou a sua fé, justificou os seus dias, atendeu, em meio aos seus limites de homem, ao pedido que o Nazareno fez ao pescador.

Num de seus últimos gracejos para mim, poucos meses atrás, apareceu numa chácara onde eu me encontrava, conversando com uma amiga que tínhamos em comum. Perguntei por onde havia chegado, que não ouvira barulho de automóvel, apenas o vira emergir de trás dos arbustos do jardim. Ele, sem perder a anedota, me esclareceu: - Cheguei voando. Os padres, depois que fazem oitenta anos, começam a  virar  anjos.

Para mim, que soube amá-lo, sua imagem, sim, vai-se voando, na minha resignada tristeza, levada na batida do bumbo que ouvia criança, nas cantigas marianas, nos acordes da banda, nas pancadas do sino. Vai-se a figura polêmica. Vai-se o pastor incansável. O amigo dos meus dias de homem. O padre dos meus tempos de menino. 



Monsenhor Mário Negro (1922-2006), que foi o pároco responsável pela Igreja Matriz de Nossa Senhora do Monte Serrat, em Salto/SP, durante quase trinta anos.

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Ouça o hino da cidade, "Salto Canção", na gravação de 1966