27 de março de 2009

A criação do Museu

Os trabalhos para implantação do Museu da Cidade de Salto iniciaram-se no final da década de 1980. Para isso, foi contratada uma equipe coordenada pelo museólogo Julio Abe Wakahara, que trabalhou em conjunto com a Prefeitura, que tinha à época, na pasta de Cultura, o atual prefeito, sr. José Geraldo Garcia. A primeira etapa, visando a formação do Acervo Museológico, consistiu em visitas às casas das famílias mais antigas da cidade, realizando-se um primeiro mapeamento de possíveis doações, em grande parte efetivadas. Muitas outras doações vieram de comerciantes, instituições e empresas, sendo as peças de própria escolha do doador. Nessa etapa, o trabalho de Ettore Liberalesso, historiador local contratado pela equipe Julio Abe, foi de fundamental importância.

O Acervo Arquivístico constituiu-se igualmente por doações, destacando-se: Hemeroteca Anselmo Duarte, doada pelo cineasta saltense vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1962; coleção dos jornais da cidade O Trabalhador, O Liberal e Taperá – em séries contínuas cobrindo um período de mais de 50 anos; Registros de Estrangeiros, documentação policial que se estende de 1939 a 1963; acervo fotográfico de mais de 1700 negativos reproduzidos a partir de coleções particulares, concentrado nas primeiras décadas do século XX. Destaca-se ainda um conjunto de 34 depoimentos de antigos moradores, que constitui o Banco de História Oral de Salto, hoje integralmente disponível para audição na Internet.

Sobre o Acervo Bibliográfico vale ressaltar que, quando foi implantado, o Museu recebeu a doação de uma coleção de livros que pertenceram à Sociedade Italiana Giuseppe Verdi, integrante do Círculo de Leitura Dante Alighieri, composto basicamente por volumes em língua italiana trazidos por imigrantes entre o final do século XIX e início do XX, bem como por volumes incorporados através de remessas vindas da Itália durante o governo fascista de Benito Mussolini – movimento esse inserido no programa de propaganda patriótica para italianos residentes no exterior.

A população envolveu-se de fato no projeto de implantação do Museu, e este foi um dos marcos principais da empreitada, contando com a participação de diversas sociedades e grupos sociais do município. Tal postura vinha ao encontro da idéia de que o Museu local deveria ser formado por aquilo que os próprios moradores da cidade julgassem significativo para uma leitura de seu passado.

Outro aspecto peculiar da concepção museológica foi a opção por não se restringir apenas à sede do Museu, mas sobretudo integrá-la com a cidade por meio de outros pontos de seu território. Assim, em vários locais de Salto, os referenciais históricos foram articulados pela comunicação visual, constituindo-se um museu-percurso que evidenciava “a cidade industrial, sua história e o ambiente natural no qual ela se implantou”, como diziam os idealizadores do projeto. O papel da sede do Museu seria o de fornecer um caminho para se conhecer Salto, um ponto de partida. Visitando-a, o interessado receberia as informações fundamentais para, em um passeio externo, desvendar a cidade de forma mais ampla, através de seus núcleos externos e pontos de referência. Com o passar dos anos, alguns pontos tiveram seus painéis removidos. Contudo, desde 2007, gradativamente eles são recolocados.


Aspecto do diagrama que sintetizava a proposta museológica adotada.

19 de março de 2009

A cidade faz o show

Em 1987, a TV Cultura, com o Projeto Cultura Paulista, viajava pelo interior do Estado de São Paulo para gravar o programa semanal “A Cidade Faz o Show”, retratando uma cidade por programa. Gravado em 19 de dezembro de 1987 e exibido em janeiro de 1988, com 58 minutos de duração, foi o programa sobre Salto. Apresentado por Júlio Zelman Lerner [1939-2007], com o auxílio das repórteres Lucila Pinto e Eliana Costa, várias pessoas emblemáticas para a cidade na época foram entrevistadas. Lembro-me, aos 7 anos, de ter assistido a esse programa. Em 2007 ele me chegou numa fita VHS. Convertido para DVD, há alguns dias o postei em partes no YouTube [http://tiny.cc/2kzty].

Na abertura do programa sobre Salto, Lerner assim apresentou nossa cidade: “margem direita do rio Tietê, imediações de uma cachoeira que os índios chamavam de Ytu Guaçu; um povoado que cresceu muito com a vinda dos italianos, após a Proclamação da República. Indústria, comércio e muita cultura na vida e tradição desta cidade. Nós estamos a 100 quilômetros de São Paulo, a capital. Aqui, vivem aproximadamente 80 mil pessoas. Hoje, é Salto que faz o show!”.

Em seguida, a repórter Lucila Pinto mencionou que “o povoado [de Salto] foi se formando em torno da capela de Nossa Senhora do Monte Serrat” para, então, apresentar a Banda de Clarins Nossa Senhora Aparecida, responsável por anunciar a partida e a chegada dos romeiros de Salto. Para falar da banda, Oswaldo de Arruda (Jacó), seu chefe, foi entrevistado. Já Eliana Costa, a outra repórter, ao tratar do Conservatório Maestro Henrique Castellari – que à época atendia a 1500 alunos – entrevistou a professora Irene Vasconcellos, ainda hoje em atividade. Instantes depois, alunas de “dona Irene” se apresentaram na Concha Acústica, tendo o rio Tietê ao fundo.

Para falar de Salto como “cidade que teve uma vida cultural e social das mais intensas”, o entrevistado foi o historiador Ettore Liberalesso, que também citou alguns dos fatos mais significativos para a formação da cidade. “Símbolo do progresso de Salto” e já tendo sido denominada “mãe dos saltenses”, a Brasital assim foi destacada por uma das repórteres – que mencionou que a empresa, naquele ano de 1987, pertencia à Santista Têxtil. Mas o enfoque do programa foi mesmo foi a arte e a cultura. Até mesmo o grupo de pagode “Coisa Nossa”, com apenas um ano de existência, foi apresentado na ocasião, sendo entrevistado o seu líder, Diógenes Vanildo Augusto. E fritando um crostoli em plena praça esteve Lázara Petrina Gil Rodrigues, entrevistada por Júlio Lerner. A seguir, Eliana Costa apresentou a “Mazzeto’s Pizzaria”: “a melhor pizza da cidade de Salto tem endereço certo... proprietário da casa e mestre no assunto é o senhor Walter Mazzeto”.

Muitas outras pessoas e temas foram apresentados nesse programa: Antônio Esmael Stecca, técnico da equipe de bicicross que existia na cidade; Waldomiro Corrêa da Cruz, o Urubatão, apresentado como tipo folclórico e querido da cidade, acompanhado de Marcos Pardim; a União Musical Gomes Verdi e seu maestro Mário Baldi; os artistas plásticos Lídia Dotta Lobo, Henrique Castellari Júnior e Eugênio José Teribelli; o então prefeito Pilzio Nunciatto Di Lelli; o violonista José Tatangelo e seu grupo de choro, Serenoso; o dr. Adriano Randi e sua coleção de selos; Maria Theodora Liberatore Vitale, como uma das mais antigas moradoras, falou dos taperás; o pescador Luiz Speroni; Edmur Ignácio Sala, que comentou sobre a Rocha Moutonnée; Thereza Camerra, senhora muito idosa, falou do período áureo da presença italiana em Salto; o assessor de Cultura, Valderez Antonio da Silva, que abordou a restauração do Teatro Verdi; e, por último, houve a apresentação de um coral regido pelo maestro Agostinho Pereira de Oliveira, encerrando o programa. Trata-se, sem dúvida, de um registro dos mais importantes e bem elaborados sobre nossa cidade em fins da década de 1980.


Alguns dos entrevistados no programa: Ettore Liberalesso (1),
Lázara Gil Rodrigues (2), Urubatão (3) e Thereza Camerra (4).

13 de março de 2009

Jesuítas e a escultura de Anchieta em Salto

A Companhia de Jesus, cujos membros são conhecidos como jesuítas, é uma ordem religiosa fundada em 1534 por um grupo liderado pelo militar basco Inácio de Loyola. A ordem surgiu num momento de conflitos dentro do cristianismo, com a reforma protestante questionando a Igreja Católica Romana.

Nesse contexto, os jesuítas propunham obediência total à Igreja Romana e pretendiam ampliar o número de seguidores do catolicismo por meio da catequese de povos que eles consideravam pagãos, por terem outras crenças ou religiões. A partir disso, muitos membros da Companhia de Jesus se instalaram em áreas da América e da Ásia.

Em 1549 chegaram ao Brasil os primeiros missionários jesuítas. O grupo pioneiro, que tinha como superior o padre Manoel da Nóbrega, colaborou com Tomé de Sousa na fundação da cidade de Salvador e criou o Colégio da Bahia. Em 1553 foi criada a Província Jesuítica do Brasil, mesmo ano da chegada do padre José de Anchieta. Gradativamente, os jesuítas estenderam sua presença por outras capitanias – inclusive São Vicente – instalando um colégio nos campos de Piratininga, em 1554, considerado marco da fundação da cidade de São Paulo.


O mistério da aldeia perdida

Em 1553, antes mesmo da fundação de São Paulo, o padre Manoel da Nóbrega, superior dos jesuítas no Brasil, estabeleceu uma aldeia para catequese dos índios no interior do continente. Ela foi batizada de Maniçoba (palavra que, na língua indígena, significa folha ou pé de mandioca). A aldeia durou menos de um ano, sendo abandonada devido a ataques de índios ou brancos hostis, doenças ou outro motivo.

O grande mistério é a localização exata de Maniçoba, que ainda hoje motiva debates. Antigos textos dizem que Nóbrega caminhou “trinta e cinco léguas pelo sertão adentro”, desde o litoral, até alcançar “um rio donde embarcam para os carijós” (somado a outras evidências, considera-se que seja o rio Tietê). Isso localizaria a aldeia na região compreendida entre Itu e Porto Feliz. Surgem, como possibilidades já cogitadas, o Porto Góes, aqui logo abaixo da cachoeira de Salto, o antigo Araritaguaba (atual Porto Feliz), ou ainda os arredores da cidade de Itu. De qualquer forma, a misteriosa aldeia de Maniçoba é um testemunho sobre a antiguidade da presença colonizadora européia nestas terras.


José de Anchieta, o apóstolo do Brasil


"José de Anchieta", obra de Murilo Sá Toledo (2008)

José de Anchieta [1534-1597], representado em escultura existente no Complexo Cachoeira (foto acima), nasceu em Tenerife, nas Ilhas Canárias, Espanha. Ainda garoto, ingressou na Companhia de Jesus, onde desenvolveu formação cultural e religiosa. Desde cedo se interessou por literatura. Escreveu contos, poemas, sermões e textos dramáticos. Expressava-se em latim, português, espanhol e tupi. Anchieta chegou ao Brasil em 1553, na comitiva do governador-geral Duarte da Costa. Em 1554, ao lado do padre Manoel da Nóbrega, fundou o colégio que se tornaria a cidade de São Paulo, tendo inclusive participado ativamente de sua defesa quando da invasão dos índios tamoios. Participou também da expulsão dos franceses do Rio de Janeiro, em 1567. É de sua autoria a primeira gramática da língua tupi, publicada em Coimbra, em 1595. Faleceu em Reritiba (hoje Anchieta), no Estado do Espírito Santo. Tornado beato pela Igreja Católica, caminha para a canonização, sendo conhecido como Apóstolo do Brasil.

O naufrágio do padre

No ano de 1568 o padre José de Anchieta passou por nossa região, como língua (intérprete) de uma expedição em direção ao interior da então capitania de São Vicente, utilizando-se do rio Tietê. Em determinado trecho encachoeirado a canoa na qual o padre estava virou, sumindo diante da força das águas. Instantes após o incidente, os tripulantes todos emergiram, exceto Anchieta, que permaneceu submerso por longo tempo. Diante disso, um índio de nome Araguaçu decidiu mergulhar a procura do padre, acabando por retirá-lo das águas. Diz a lenda que Anchieta foi encontrado no fundo do rio, sentado numa pedra, calmamente lendo seu livro de orações. O local do acidente foi batizado de Avaremanduava, que significa “lugar onde o padre naufragou”, e localiza-se logo abaixo da cidade de Porto Feliz.


Quadrinhos do artista Rodrigo Schiavon, com textos meus, representando a lenda do naufrágio de Anchieta, 2008.

4 de março de 2009

Dr. Henrique Viscardi (1858-1913) - parte 2

Na semana passada falamos neste mesmo espaço da vivência de Henrique Viscardi na Itália e de sua passagem pela África. Interessa-nos, agora, o período em que ele esteve em Salto, iniciado em 1902. Ele para cá veio com uma função pré-determinada: chamado pelo dr. José Weissohn – industrial italiano estabelecido com suas fábricas às margens do rio Tietê – para assumir a “chefia do serviço sanitário” daquelas tecelagens. Na prática, Viscardi prestava toda a assistência médica necessária aos operários de Weissohn. Várias são as fotos do acervo do Museu da Cidade de Salto na qual posam Viscardi, Weissohn e demais diretores das tecelagens existentes no início do século XX.

Viscardi envolveu-se, ainda, no tratamento da ciática e do reumatismo, dando continuidade aos trabalhos pioneiros no combate a esses males a partir dos métodos introduzidos pelo casal Segabinacci, italianos, também em Salto. Logo que chegou, o médico viveu no Hotel Saturno. Tempos depois se mudou para um casarão de pedra, existente até hoje, no qual funciona a biblioteca pública municipal, na Rua Monsenhor Couto. Bem quisto por toda a população saltense daqueles tempos, era chamado de “médico dos pobres” ou “médico das flores”.

Amante da música, não foram poucas as ocasiões em que o médico trouxe de Itu músicos e cantores para as festividades da padroeira, Natal e Semana Santa, arcando ele próprio com os custos. Foi dele a iniciativa pioneira em constituir um coro e orquestra para a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Monte Serrat. Em foto de 1903, é possível vê-lo junto a nomes que, anos mais tarde, teriam destaque no cenário musical saltense, tornando-se maestros: casos de Henrique Castellari [1880-1951] e José Maria Marques de Oliveira [1890-1981] – o Zequinha Marques – que na foto aparece com 13 anos de idade.


Zequinha Marques (1), Henrique Castellari (2) e Henrique Viscardi (3). Coro e orquestra da Matriz, 1903.

No referido casarão, Viscardi vivia com uma antiga empregada sua, com a qual teve dois filhos, falecidos com menos de dois anos de idade e antes dele próprio: Antônio Virgílio e Antônia, seus nomes. Estão enterrados em túmulos de mármore branco, cercados por grades de ferro, ao lado do túmulo do pai. Em 1913, quando da morte de Viscardi, uma multidão acompanhou seu enterro, que se deu no então Cemitério Novo, na Vila Nova, hoje denominado Cemitério da Saudade. Em seu túmulo, que ainda hoje recebe flores, lê-se um epitáfio em língua italiana: “Nesta sepultura que é a expressão da dor e da admiração de todos, está mudo e frio o coração do dr. Henrique Viscardi, médico insigne, que era todo caridade e que cessou de palpitar no dia 13 de dezembro de 1913”.




Saltenses em cortejo levam o corpo do dr. Henrique Viscardi ao então “Cemitério Novo”, 13.12.1913.

Ouça o hino da cidade, "Salto Canção", na gravação de 1966