18 de outubro de 2014

Urubatão: memórias de um tipo popular


Em agosto de 2006, o Museu da Cidade de Salto realizou a exposição “A risada imortal”, assim anunciada no agenda cultural daquele mês:

Realizaremos ao longo do mês de agosto uma pequena homenagem a “Urubatão”, figura popular e folclórica de nossa cidade. Nesta exposição, disponibilizaremos o áudio de uma entrevista de 40 minutos realizada por volta de 1987, através da qual é possível rememorar a risada característica de Waldomiro Corrêa da Cruz. Fará parte da amostra um quadro do artista saltense Hélio Rodrigues que retrata o homenageado, bem como uma crônica de seu irmão Jorge Luiz sobre o tão conhecido tipo popular das ruas de Salto nas décadas de 1970 e 1980. Há ainda uma capa de revista com a foto de Urubatão nos seus últimos anos de vida, já empunhando uma bengala. Urubatão nasceu em Porto Feliz-SP no ano de 1931, tendo falecido em Salto em 2002. Além das diversas anedotas por ele contadas, pode-se conhecer nessa entrevista um pouco de sua história pessoal, desde o fato de ter trabalhado na cana-de-açúcar durante a infância até o curioso episódio no qual ele teria “ressuscitado”. Quem conversa com Urubatão na gravação é Marcos Pardim, autor de uma crônica sobre diversos tipos populares saltenses, inclusa na amostra. Crônicas de Valter Lenzi sobre a mesma temática também estarão expostas. A seção mais curiosa talvez seja aquela que reproduz textos da imprensa local publicados nos meses de junho e julho de 1983, quando boa parte da cidade pensou que Urubatão havia falecido e lamentava sua perda.

Abaixo, alguns fragmentos da memória desse ícone da cidade, entre crônicas, desenhos e fotografias:

Desenho de Gileno para o Jornal Taperá

Desenho de Maurício para o Jornal Taperá

Capa da revista Circuito - foto de Claudiney Bravo

Urubatão em foto de 1983 (acervo do Jornal Taperá)

Homenagem póstuma a quem não morreu
Urubatão é uma figura folclórica de Salto, que há tempos vive na região central da cidade, tomando suas “biritas” e divertindo as pessoas nas longas conversas dos bares. Quando ele dá aquela risada gostosa (o que quase sempre acontece), abrindo aquela bocarra desdentada, são os circunstantes que riem daquele jeito todo seu de gozar a vida.
Figura sempre presente no dia-a-dia dos saltenses, em meados de 1983 ele desapareceu da cidade. Diziam que ele estava internado num hospital, mas não se sabia exatamente se era em Itu, Porto Feliz ou Indaiatuba, até que correu a notícia de que ele havia morrido. Na semana em que o fato teria acontecido, o Jornal Taperá publicou a carta de um leitor, Walter Disney Prata, que lamentava o ocorrido.
Sob o título “Homenagem Póstuma”, Disney lembrava que Urubatão chegou a Salto por volta de 1956, trabalhando inicialmente na serraria do Walter Carra. “Quantos vagões de madeira ele ajudou a descarregar no pátio da antiga Sorocabana, sempre alegre e com aquelas gargalhadas que Deus lhe inspirou. Suando às bicas, exercia suas funções com afinco”, destacava Disney. Posteriormente, segundo ainda o missivista, Urubatão foi trabalhar na Prefeitura, passando depois para a indústria Picchi, onde Disney teve a oportunidade de ser seu colega de trabalho por dois anos.
“Você partiu, Urubatão, mas deixou sua marca entre nós”, dizia a carta do leitor, acrescentando que “sozinho em seu barraco, você, Urubatão, devia estar pensando em sua mãe, que em Porto Feliz estava pensando em você. E foi pra lá, ao lado dela, que você foi morar para a eternidade”. Finalizando, Disney dizia: “Adeus, Urubatão, não esqueceremos jamais sua passagem por nossa cidade, porque um personagem como você nunca será esquecido”.
Passados alguns dias eis que Urubatão reaparece na cidade, para surpresa de muitos. “Ué, você não tinha morrido?”, perguntavam-lhe, obtendo como resposta uma risada longa e gostosa, como não poderia deixar de acontecer. A notícia do seu falecimento surgiu porque uma pessoa com um nome parecido com o seu havia falecido em Porto Feliz, mas Urubatão estava internado num hospital de Jundiaí.
Hoje, 15 anos depois da “homenagem póstuma” àquele que não morreu, Urubatão continua vivo, enquanto Disney faleceu há alguns anos.
(Em “Cidade Divertida e Pitoresca”, de Valter Lenzi)

Estes são nossos marajás!
(Em 1987 falava-se muito em marajás, pois o candidato à presidência da República, Fernando Collor de Mello, rotulava-se um “caçador de marajás”, que ganhavam verdadeiras fortunas do Governo Federal. Será que teríamos marajás também em Salto?)
Num trabalho jornalístico que vai ficar gravado na história da imprensa saltense como um dos maiores “furos” dos últimos anos, conseguimos descobrir os marajás de Salto. Quem falou que eles não existem? Existem sim, e não são poucos. É bem verdade que eles se escondem muito bem, utilizando disfarces para não chamar a atenção, mas ninguém escapa à observação aguda e sensível do Boquinha, que, com absoluta exclusividade, inicia aqui e agora a publicação dos nomes dos verdadeiros marajás saltenses (É proibida a reprodução, no todo ou em parte. Direitos reservados – Boca Press)
1 – ONOFRE E MARIA PINGA – Quem vê esse casal tão unido e romântico, que faz ponto sob a cobertura da antiga estação da Fepasa, não imagina que ali está uma das maiores fortunas de Salto. É bem verdade que às vezes eles se desentendem e chegam a trocar até alguns sopapos, mas isso ocorre geralmente quando suas ações na Bolsa de Valores estão em baixa. Aplicam no “overnigth” e levam barras de ouro naqueles sacos que carregam nas costas, sacrifício que fazem desde quando perderam dezenas de quilos que confiaram ao Garnero e ao Paim (na época ministros), seus amigos da infância, aos quais procuraram salvar da falência. Moravam em Alagoas e viviam modestamente, até o dia em que ambos ganharam de um tio deputado empregos públicos. Com salários superiores a 200 salários mínimos cada um, logo fizeram seu pé-de-meia, mas muita gente estava de olho neles e tiveram que mudar-se para o Sul. Estabeleceram-se aqui, fingindo-se de pobres, para não despertar maiores suspeitas. Mensalmente recebem seus holerites pelo Correio e cada vez que isso acontece suas reservas aumentam ainda mais e eles passam dois ou três dias e noites em claro, tomando cachaça e discutindo qual é a melhor forma de aplicar o dinheiro que vão receber. 
2 – URUBATÃO – as suspeitas sobre Urubatão aumentaram quando Boca-de-Siri surpreendeu-o no Bar da Ponte comemorando a queda do ministro Dílson Funaro. Rindo desbragadamente, ele demonstrava sua satisfação, pois tinha chegado ao seu conhecimento que o Governo Federal pretendia requisitar toda a fortuna dos marajás, para pagar os juros da nossa dívida externa. Saindo Funaro, segundo ele, a pretensão cairia por terra e os marajás estariam tranqüilos. Mas, como se explica o fato de Urubatão ser um marajá, se nunca saiu de nossa cidade? Essa questão foi apresentada ao Boca-de-Siri, que pensou, ruminou, até que descobriu: lembram-se quando anunciaram a morte de Urubatão? Naquela época ele viajou para o norte do país, onde um parente seu é copeiro no Palácio do Governo do Maranhão. Com a ajuda desse parente, foi nomeado conselheiro do Tribunal de Contas daquele Estado, com salários superiores a 300 mil cruzados mensais. Para quem não acredita nessa história, provamos que é verdadeira: quem é que ri com tanta espontaneidade e prazer numa época de crise, aumentos de preços e salários defasados, como a que vivemos? Só mesmo um marajá como o Urubatão. 

"Boca-de-Siri", Jornal “Taperá” – 02/05/1987

O homem que gargalhava
Desta vez foi pra valer: Urubatão morreu de verdade. Aconteceu no final de 2002, depois de viver doente seus últimos dias, quando até sua risada característica emudeceu. Apesar de ser uma figura bastante conhecida na cidade, seu enterro foi testemunhado por apenas 4 solitários amigos, que foram lhe levar o último adeus. Isso provavelmente aconteceu pelo fato de sua morte ter ocorrida num domingo, quando dificilmente as pessoas tomam conhecimento de um fato dessa natureza.
Ele teve um primeiro “falecimento” em 1983, com direito até a despedida no jornal. É que morrera uma pessoa com um nome parecido com o seu e como não se encontrava na cidade na época, acharam que tinha sido ele a vítima. Cerca de 15 dias depois, no entanto, Urubatão apareceu na cidade e como não tinha jeito nem cara de fantasma, desfez o mal entendido, não chegando a assustar ninguém.
Um amigo, que partiu bem antes dele, publicou uma “Homenagem Póstuma” chorosa no Taperá e até o esperto Boca-de-Siri escreveu um adeus sob o título “A gargalhada que emudeceu”. As palavras que ele disse na ocasião, agora tem validade.
Ninguém ria tão desbragada e escandalosamente como Urubatão. Achar engraçado não era simplesmente sorrir ou mostrar os dentes parcimoniosamente. Isso não era com ele. Sua marca registrada era a gargalhada aberta, espontânea, sem barreiras para o som grave ou estridente, mas acima de tudo barulhento e contagiante. Quem ouvia aquela risada sonora e principalmente quem olhava aquele negrinho magro, desdentado, mal vestido, deixava-se contaminar e ria também, sem saber o porquê.
Positivamente, não levava a vida a sério. Aliás, estava completamente descompromissado com ela, pois não se cuidava, bebia, fumava e ria – principalmente ria – por qualquer coisa engraçada ou por qualquer desgraça. Ninguém sabe onde e como ele ia buscar tanto fôlego, para rir daquela maneira e por tanto tempo.
Não tinha profissão definida, mas ninguém contestaria se o rotulassem de “gargalhador” ou “risão”, aquele que ri muito por qualquer coisa, segundo os dicionários. Não se preocupava com o corpo, principalmente com os dentes, apesar destes serem para ele uma espécie de “instrumento de trabalho”, pois estavam sempre à mostra.
Vivia mal (vivia?), dormindo em cubículos sujos e comendo o que arranjava e o que os amigos lhe davam. Invariavelmente, porém, vestia seu ensebado terno escuro, uma gravata que já fora vermelha e saía por aí, percorrendo os bares, onde contava piadas, bebia e ria – ria muito. No carnaval costumava vestir-se de mulher e circulava pelas ruas divertindo os outros e a si próprio.
Era o símbolo do humor e da alegria, numa época de tão pouco riso e tão pouco siso. Seu nome verdadeiro ninguém conhecia: Valdomiro Corrêa da Cruz. Chamavam-no Urubatão e num domingo sua risada desbragada, escandalosa, espontânea, barulhenta e contagiante silenciou.
Se lhe fosse dada oportunidade, possivelmente na hora da partida ele teria sido tão irreverente como sempre foi, zombando da morte com a mais estrondosa gargalhada de sua miserável, mas – paradoxalmente - alegre e divertida existência.                           
“Momentos”, de Valter Lenzi

Urubatão
Em toda cidade existem pessoas folclóricas. A nossa não foge à exceção. Aliás, um parente do amigo "Gim Garavello", que não é daqui, ao comentar sobre esse assunto, disse certa vez, que as pessoas folclóricas das cidades que conhece, caberiam num livro, mas a quantia de gente com esse perfil em Salto, tranqüilamente, comporia uma enciclopédia.
Admiro e tenho uma ponta de inveja desses tipos humanos fascinantes e alforriados de obrigações, que vivem desprendidos das coisas que nos acorrentam, alheios a qualquer modelo de convencionalismo. Conheci inúmeros nessa longa e entediante caminhada. Considero-os meus amigos e sempre que posso, converso, ouço e acabo aprendendo com eles.
Urubatão foi uma dessas figuras que desde que o conheci, coloriu com a sua sagacidade e bom humor, muitos dos meus, sem graça e desbotados, dias.
Dono de uma gargalhada contagiante, esse cidadão só soube deixar, durante toda a sua vida, um rastro de alegria por onde passou.
Não me lembro de que maneira e nem quando o conheci. Sei que passava quase todos os dias no meu local de trabalho, vendendo bilhetes de loteria e rifas. Ao se retirar, não deixava de contar uma piada que se encerrava sempre com uma sonora e característica gargalhada. Não tinha fé nos bilhetes, mas não escapava de marcar pelo menos um número da sua rifa, cujo prêmio era um pedaço de lombo ou de pernil. Com a sorte que sempre me acompanhou, uma única vez fui premiado. 
Fiz questão de levá-lo à casa dos meus pais no almoço de domingo, em que o prato principal foi justamente a iguaria a que tinha sido contemplado. A presença de Urubatão com o seu humor que nunca lhe abandonava, resultou num almoço inesquecível para todos nós. Uma das inúmeras piadas que contou nesse almoço, foi a da confusão provocada pelo personagem Judas num drama de circo, em Porto Feliz, onde se representava a Última Ceia. A clássica cena da partilha do pão, ao chegar nas mãos de Judas, foi suspensa, pois o apóstolo o comeu por inteiro. A peça foi interrompida devido à balbúrdia instaurada no momento em que todos, inclusive o que fazia o papel de Cristo, foram para cima daquele traidor esfomeado.  
Tudo o que era relacionado a Urubatão era cômico, inclusive, a notícia da sua morte. Ficou internado por algum tempo num hospital de uma cidade vizinha. Um dia a cidade acordou sem graça e ouviu, tristonha, que Urubatão havia morrido. Aqui neste mesmo "Taperá", foi alvo de homenagem por meio de uma emotiva crônica, escrita por um dos seus incontáveis admiradores. Passado um tempo, eis que surge, para a alegria geral de todos, pelas ruas da cidade, com a sua inconfundível risada, Waldomiro Corrêa da Cruz, conhecido somente por Urubatão. Não tenho bem certeza, mas quem o homenageou nas páginas do jornal, acabou partindo primeiro.
Falando em morte e, certamente, sem nunca ter ouvido falar do romance "O Retrato de Dorian Gray" de Oscar Wilde que narra o pacto feito pelo personagem principal em troca da sua eterna juventude, Urubatão contava uma anedota de roteiro parecido. Dizia que existia um velho e rico fazendeiro em Porto Feliz, que, temeroso da morte, fez um pacto diabólico de rejuvenescimento: a cada 10 anos remoçados, permutava com uma de suas propriedades.
O velho, insatisfeito, foi se desfazendo dos seus dotes até chegar a recém nascido, quando contraiu sarampo e acabou morrendo... E imediatamente a sua incomparável gargalhada se ecoava por todos os cantos.  
Histórias engraçadas sempre pontuaram a vida desse sujeito que era querido por todos. Quando trabalhava no serviço de rua, funcionário que era da Prefeitura Municipal, foi destacado certa vez, para fazer reparos nos paralelepípedos em frente à agência da Caixa Econômica Federal, onde na época funcionava as Lojas Cem. Rindo da própria situação, dizia para quem quisesse ouvir que "a única coisa que sobrava ao pobre era o azar", pois
no mês em que tinha atrasado o pagamento do carnê fora obrigado a trabalhar justamente em frente à loja na qual estava devendo. 
Quando a TV Cultura visitava o interior com um programa no qual divulgava os atrativos das cidades, Salto também foi protagonista dessa série. No programa eram mostradas todas as atrações do município: desde os pontos turísticos até seus mais ilustres cidadãos. Dentre a cachoeira e a ponte pênsil; o cineasta Anselmo Duarte, Maestro Gaó e outros, lá estava a figura exótica e extremamente simpática de Urubatão, que ao ser entrevistado, completamente a vontade, colocou as mãos nos ombros do apresentador Júlio Lerner e desandou a contar causos engraçados que não queria mais parar.
Já casado, gravei esse programa e o convidei num domingo para almoçar em minha casa e assistir ao vídeo de sua entrevista. Sua saúde já estava debilitada e a bebida lhe castigava com maior intensidade. Quase nada comeu naquele dia, fez questão de assistir às gravações, mas duvido que se tenha reconhecido diante da TV.
Depois disso, ainda lhe dei várias caronas, da praça da Concha Acústica até o seu abrigo. Urubatão, sem deixar de lado a veia cômica encarnada de modéstia e gratidão, vivia embriagado e caminhava com muita dificuldade. A sua gargalhada agonizava...
Em nome dele, presto esta singela homenagem à galeria dessas figuras folclóricas, sensíveis e pitorescas, de espíritos livres, felizes, completamente desprovidas de bens e das glórias mundanas, que com os seus modos peculiares de encarar a vida, preencheram com alegria, leveza e descontração o dia-a-dia da nossa cidade.
Salve Bastião Raposa; Bi-Bi, Fon-Fón; Zé Macaco; Dito Mé; Chico Pracídio; Maria da Pinga; Zé Batatão; Rato Branco; João-das-Moças; Inácio Vassoura; Dungo; Taragin-come-formiga; Irmãos Mazzaropi (Bütchen), e muitos outros, dos quais não tive o prazer de conhecer.     
Duarte Rodrigues

26 de julho de 2014

Os pássaros taperás e a cidade de Salto

Vejamos as principais referências documentais relativas à ave denominada taperá e de sua apropriação enquanto elemento simbólico por parte da comunidade saltense.

Segundo o Dicionário Aurélio :

TAPERÁ [Do tupi = ‘saído da tapera’.] 

Substantivo feminino. 
1. Zool. Ave passeriforme, hirundinídea (Phaeoprogne tapera fusca), que ocorre em toda a América do Sul cisandina. A coloração é pardo-acinzentada, mais clara na parte inferior, com o meio do peito e o abdome brancos. [Sin.: andorinha-do-campo, chabó, major.]

Entre as fendas dos afloramentos graníticos que constituem a Ilha da Usina da EMAE, na margem esquerda do rio Tietê, era muito comum a presença dos pássaros denominados taperás, especialmente nas proximidades na cachoeira. Esses parentes próximos das andorinhas faziam dessas fendas seu local de repouso. Viajantes europeus em meados do século XIX já mencionavam em seus textos a existência dessas aves. O escritor viajante português Augusto-Emílio Zaluar [1826-1882], em seu livro Peregrinação pela Província de São Paulo (1860-1861), em meio aos parágrafos que dedicou a sua passagem pelos arredores de Itu, legou-nos uma bela descrição envolvendo os taperás de Salto:

“Lançando os olhos ao horizonte, vimos vir lá de seus extremos confins uma espécie de nuvem negra e compacta, que se avançava com rapidez nos ares, mudando apenas ligeiramente de forma. Era um imenso bando dessa espécie de andorinhas a que se dá aqui o nome de taperás.
Quando pairou acima de nossas cabeças aquela massa escura, abrindo-se pelo meio, formou um círculo de largas dimensões, e começou a girar vertiginoso, até que, voltando outra vez à sua forma primitiva, tornou a afastar-se tão alto e tão longe que a perdemos de vista. Pouco depois volveu, fez a mesma evolução e tornou a retirar-se, repetindo ainda umas duas ou três vezes este movimento aéreo.
Como, porém, a noite se aproximasse, e nós continuássemos em nossa posição imóvel sobre os rochedos, as taperás começaram a cortar com um vôo oblíquo o espaço que as separava da terra, e a esconder-se nas fendas escuras das rochas que formam o parapeito oposto do outro lado do rio. Parecia na violência e silvo uma chuva de setas, que, disparadas de um arco invisível, se cruzavam sobre nossas cabeças.
Era-nos preciso a pena do célebre naturalista americano Audubon para podermos dar uma idéia deste quadro!
Quando as fendas dos rochedos estavam já cheias de taperás, o que tornava ainda mais escuros os interstícios das pedras denegridas, um de nossos companheiros, apontando a espingarda de dois canos, carregada de tariva, à fenda onde havia maior porção dessas aves, disparou dois tiros, um após o outro, cujo estampido foi reboando lugubremente de penedo em penedo até se perder no fragor das águas.
Senti nesse momento confranger-se-me o coração. As avezinhas que escaparam ao chumbo levantaram vôo apavoradas, e as que ficaram mortas ou feridas, caindo na correnteza, foram enoveladas na espuma, aparecendo de vez em quando boiando à tona d’água, para depois sumirem-se de todo, sepultadas no abismo.
Pobres taperás, antes não fôssemos perturbar a sua existência inocente!”

Cerca de duas décadas mais tarde, o cuidado com os taperás foi preocupação do industrial e político local Francisco Fernando de Barros Júnior [1856-1918] - o doutor Barros Júnior, cognominado “Pai dos Saltenses”. Em sessão da Câmara Municipal de Itu, em 1883, Barros Júnior solicitava: “Indico que se acrescente ao art. 45 o parágrafo único seguinte: Fica proibida a matança dos pássaros denominados Taperás do Salto. O contraventor pagará 5$000 de multa”.

Auguste de Saint-Hilaire [1779-1853], que esteve diante do Salto em 1819, em seu livro Viagem à Província de São Paulo fez a mais antiga referência aos taperás de que se tem notícia. Embora não denomine as aves citadas como taperás, propriamente, sem dúvida trata-se dessa ave:

“A fim de ter tempo de examinar à vontade esse belo espetáculo eu tinha pedido ao capelão (...) para guardar os meus burros em sua propriedade, com o que ele concordou amavelmente. Esse padre contou-me que, quando viera para ali havia quarenta anos, a rocha de onde o rio se despeja se projetava para frente e era escavada como se fosse uma calha; a água ao cair descrevia um arco, e as andorinhas costumavam passar em revoada sob ele, para cá e para lá. Pouco a pouco, porém, a saliência na rocha foi sendo desgastada pela passagem da água, até desaparecer por completamente. Vi ainda um grande número de andorinhas ao redor da cachoeira. Antes da queda d’água, só se encontram no Tietê peixes de espécies pequenas, mas abaixo dela pescam-se peixes de tamanho considerável, como dourados, etc.”

Nos últimos anos, com a chegada da poluição no rio Tietê, a quantidade de taperás sobrevoando nossa cidade diminuiu consideravelmente. Contudo, por conta dos numerosos bandos dessas aves ao longo das décadas e séculos anteriores, elas se tornaram um símbolo de Salto, estando presentes no brasão de armas (vide figura 1 e taperás em destaque na figura 2), na bandeira e no hino da cidade, nos versos: “Salto! Da linda cascata, das praças floridas, dos bandos de taperás. Salto! Que eles encantam, voando e cantando pra lá e pra cá”, de autoria de José Francisco Archimedes Lammoglia [1920-1996].


Figura 1 - Brasão de Armas Municipal


Figura 2 - Detalhe dos taperás presentes no Brasão

Portanto, os [bandos de] taperás são emblema heráldico de afeição à própria terra e de igualdade entre os cidadãos, sendo tais aves o símbolo de Salto, intimamente ligadas às tradições locais.

Nota: Quase nenhum saltense diz "as [aves] taperás", mas sim "os [pássaros] taperás". Portanto, é de se acreditar que o s termos "bando de" ou "pássaros" esteja subentendido, e não "aves".


Ouça o hino da cidade, "Salto Canção", na gravação de 1966