9 de junho de 2013

Para ter a Ponte Pênsil, Salto perdeu uma rua

Símbolo de um acordo entre industriais e pescadores, a Ponte Pênsil completa seu centenário de existência em 2013. Nascida numa época em que as tecelagens já constituíam uma barreira física entre a cidade e o rio, ela sempre representou – por si só – um convite ao trânsito por aquelas paragens e à contemplação da natureza e da obra do homem. Tendo a força de um rio que é uma marca da história paulista de um lado, e a imponência da fábrica erguida em pedra e tijolos de outro, ela sobrevive à metamorfose das cercanias. Restaurada por diversas vezes, constitui há tempos um ícone do turismo local, setor que hoje, na cidade, carece de fôlego e perspectivas para o futuro.

Prof. Elton Frias Zanoni


Despedida de um Delegado de Polícia de Salto, embaixo da Ponte Pênsil,
com a elite masculina da época, ca. 1930 (acervo Ettore Liberalesso).

Quem hoje vê o portão principal do centro universitário que ocupa os prédios da antiga Brasital, ao lado de uma das torres, não se dá conta que ele é o marco da apropriação de um espaço público por particulares. Isso ocorreu há mais de um século, à época que a tecelagem instalada naquele espaço levava o nome de Società per l’Esportazione e per l’Industria Italo-Americana, ou simplesmente, Sociedade Ítalo Americana. Era ela a sucessora das duas tecelagens pioneiras instaladas no último quarto do século XIX, adquiridas pelo ítalo-judeu José Weissohn e por ele repassadas a essa multinacional que já contava com diversos investimentos na América do Sul. Estamos falando da mítica Rua do Porto e do seu trecho que deixou de ser público e foi incorporado ao patrimônio da Ítalo Americana.

Vista externa da Fábrica Júpiter. Vê-se a rua interna que era a continuação da Rua do Porto, atual Rua José Weissohn, final do século XIX (acervo Ettore Liberalesso).

A rua em questão – para situar nosso leitor – é a atual José Weissohn, que se inicia na Praça Antônio Vieira Tavares (Largo da Matriz) e termina na Rua 9 de Julho (antes denominada Rua de Campinas). O nome Rua do Porto, que vigorou na primeira década do século XX, foi dado pois a via pública se alongava até as margens do rio Tietê, terminando num trecho conhecido por Porto das Canoas, nas imediações da Ilha Grande, então chamada Ilha do Padre. Tratava-se de um caminho bastante utilizado pelos moradores de Salto – uma localidade que começava a crescer especialmente pela chegada de um grande contingente de italianos, atraídos pelo trabalho nas tecelagens locais, que abandonavam as fazendas das regiões de Itu e Campinas, após enfrentarem um primeiro momento de exploração por parte dos cafeicultores paulistas.

A importância do referido trecho da Rua do Porto que ia do Largo da Matriz até as margens do rio se dava por dois motivos principais: era um acesso a um local com fartura de peixes e também local de retirada de areia, necessária para as construções de uma cidade que via sua população e o número de novas edificações crescerem num ritmo acelerado. A colocação de um muro pelos industriais, impedindo o acesso, agravou um desentendimento que não era novo. Por cerca de três décadas, desde a época da instalação das fábricas pioneiras, uma série de conflitos foram travados entre as fábricas que se instalaram na margem direita do rio Tietê e os pescadores de Salto. Há registros, inclusive, de tiroteios entre esses pescadores e os prepostos dos industriais, que encaravam as incursões dos pescadores como invasão de propriedade privada, mesmo oficialmente não sendo.

Ponte Pênsil e Restaurante do Salto, vistos da Pedra Chata, 1974
(acervo Ettore Liberalesso).

A paz ocorreu a partir de um acordo firmado entre a Câmara Municipal de Salto e a Società Italo-Americana. Pelo acordo, de 1910, a Câmara cedeu à indústria o referido trecho da rua, que passou a fazer parte de seu patrimônio. E a indústria, em troca, se comprometeu a instalar uma ponte metálica que daria aos pescadores acesso ao Porto das Canoas – eis a Ponte Pênsil. Além disso, se comprometeu também a construir um mirante em local privilegiado, de onde se pudesse contemplar a cachoeira – o que de certa forma foi dificultado desde a instalação, junto à queda d’água, da fábrica Fortuna, de José Galvão. O mirante, demolido em 1968, deu lugar ao Restaurante do Salto, que funcionou por poucos anos. Desativado, em seu espaço se instalou um clube e, sobre ele, uma galeria de artes. Esse prédio, modificado, corresponde hoje ao Memorial do Rio Tietê.

Finalizada em 1913, a ponte em aço e madeira, com 75 metros de extensão, proibiu definitivamente o acesso ao Porto das Canoas por meio da Rua do Porto. Desse modo, pescadores, visitantes e demais moradores que desejassem ter acesso ao trecho do rio abaixo da cachoeira deveriam obrigatoriamente contornar os prédios das fábricas e passar pela Ponte Pênsil, balançando sobre a margem direita do rio Tietê. Durante muitos anos a manutenção da ponte coube à Brasital – que desde 1919 tornou-se a proprietária da Ítalo Americana. Hoje a ponte figura como atrativo turístico de Salto, a completar seu centenário neste ano. Até bem pouco tempo atrás era possível ver uma placa, logo na entrada da ponte, que proibia a pesca a 200 metros, tanto abaixo como acima da cachoeira – e avisava sobre uma multa aos infratores.

Os terrenos da Sociedade Ítalo Americana se estendiam até a propriedade da família Arruda Castanho, que hoje vem a ser o Jardim Três Marias. Na época, boa parte dessa área era de mata virgem. E a divisão entre os terrenos era feita por meio de um valo profundo, por onde corria a enxurrada. Esse valo, encoberto e desapropriado aos Arruda Castanho pelo poder público municipal, corresponde à atual Rua 24 de Outubro – via pública que já se chamou Antônio Melchert, em referência ao industrial que instalou a Fábrica de Papel do Salto, em 1889. Apenas perdeu esse nome em 1985. Popularmente, a via ficou conhecida como Rua dos Pescadores, ou ainda, Rua São Pedro – em virtude de ser um novo acesso ao Porto das Canoas. Essa nomenclatura se aplicava apenas ao trecho compreendido entre a Rua Joaquim Nabuco e a margem direita do rio Tietê. Assim, a abertura desse novo caminho, somado à Ponte Pênsil, foi a maneira encontrada pela Câmara à época de resolver a questão e fazer cair no esquecimento, ou legalizar, a apropriação empreendida pelos industriais aqui instalados. A ponte instalada há poucos anos, denominada Ponte dos Pescadores – ligando o Três Marias ao São Pedro e São Paulo – justifica seu batismo por esses fatos.

A seguir, algumas fotos postadas no grupo "Fotos Antigas de Salto/SP":

Travessia da ponte pênsil, ca.1948. À esquerda, em primeiro plano, o Sr. Boanerges Frias (1929-2016).

A placa que existia na entrada da ponte. Foto de João Luis Archanjo, 1990.

Turistas em 1970. Foto de Luiza Gentile de Aguiar.

Turistas em 1978. Foto de Heraldo Bertagna Jr.

Abandono, 1986. Foto de Sueli Martini.



Ouça o hino da cidade, "Salto Canção", na gravação de 1966