10 de novembro de 2007

Manuscritos

No espaço hoje inaugurado, pretendo tratar não somente de história. Por força do ofício, é neste campo que me sinto menos inseguro para escrever. Aos que questionarem a validade de se abordar determinados conteúdos do passado - o que é comum entre os utilitaristas - valho-me da indagação do historiador francês Marc Bloch [1886-1944]: “Se a história, não obstante, para a qual nos arrasta assim uma atração quase universalmente sentida, só tivesse isso para se justificar, se fosse apenas, em suma, um amável passatempo, (...), valeria a pena todo o esforço que fazemos para escrevê-la?” A título de exercício, acreditemos que história serve apenas para entreter e pronto. Se não válido, o argumento é prático. Vai além de afugentar parcialmente quem indaga sobre a validade de se tratar do passado. Como complemento ao despacho, há sempre uma indicação de leitura possível - e que o questionador vá saber sobre sem muito importunar. Com todo o respeito: vá ler. Pois seria este exatamente o fim último da história, por nosso raciocínio estreito: entreter pela leitura. Mas se a paciência é necessária para escrever, quem dirá para ler! Peço paciência dos leitores. Poucas são as pessoas capazes de entreter verbalmente. Aos demais, resta escrever. Escrita curta, como curtas são as notas que seguem, com a dita pretensão de entreter, que não é simples.

À procura de algo original sobre o passado desta cidade, recorri a fontes primárias do final do século XIX e início do XX. Documentação policial, mais propriamente da Subdelegacia de Salto. Citar a fonte é vital: fazem parte do acervo arquivístico do Museu da Cidade. Um dos subdelegados da época era Barros Júnior [1856-1918], um dos industriais pioneiros de Salto. A alternância de subdelegados, num curto período, era recorrente. Como trabalhei durante um ano com documentação policial do Rio de Janeiro no início do XX, sempre tive curiosidade, ingênua, de ler documentação semelhante daqui de Salto. As poucas notas que nos legaram, proporcionais à realidade local daqueles tempos, são de um sabor relativo se comparadas com as cariocas, mas interessantes para quem se envolve com a História local vinda de baixo [aquela que sabiamente inclui as pessoas comuns], em especial aos que procuram mero entretenimento. Trago abaixo alguns trechos dessa documentação.

Iniciemos por uma dose de estrutura funcional. 22 de janeiro de 1902. “Nesta Villa do Salto de Ytú”, na casa do delegado de polícia em exercício, João Galvão Pacheco, o escrivão João Baptista Sampaio anotava um “termo de compromisso” na página 4 do livro aberto exclusivamente para registrar os tais termos da “Delegacia da Villa do Salto”. Tratava-se da nomeação de João Paulino Mendes da Silva para o cargo de “carcereiro interino durante a suspensão do cidadão João Baptista Honorio, por motivo de abuso e relaxo do seu serviço”. Os possíveis fatos causadores da suspensão mencionada não estão relatados.

Pelas três páginas anteriores do mesmo livro, aberto em janeiro de 1901, pode-se fazer um breve mapeamento dos cidadãos envolvidos com as funções policiais daquele ano inicial do século XX. O primeiro dos termos de compromisso, de 19 de janeiro, anotado pelo escrivão ad hoc Paulo Carneiro, justamente nomeava João Baptista de Sampaio como escrivão da “Delegacia de Polícia d’esta Villa”. Na ocasião, o delegado era Julio Pires da Silva. Em 21 de março, comparecia a casa deste último Antonio Fernandes da Silva, que por sua vez “prestou compromisso legal do cargo de 3º supplente do Delegado de Polícia desta Villa”. Nesse momento, já era escrivão o referido João Baptista de Sampaio.

“Aos seis dias do mez de Abril de mil e novecentos e um, nesta Villa do Salto de Ytú”, na casa do delegado Julio, compareceu “o cidadão Francisco de Paula Nicacio e prestou o compromisso legal do cargo de inspetor de quarteirão do Bairro do Burú”. Nicacio “declarou acceitar o referido cargo e ser fiel aos cumprimentos dos seus deveres”. Nicacio cederia seu posto a Delfino Leite de Barros em 24 de agosto de 1901. Nomeações semelhantes ocorreram para outras localidades rurais de nossa Salto, como com Elias Augusto Bueno, nomeado em 11 de abril como inspetor de quarteirão do “Districto da Conceição”, e Ignacio Dias Aranha, para o distrito de Urucanga. Os inspetores de quarteirão eram representantes da polícia em povoados afastados dos centros urbanos. Eram eles os responsáveis pela manutenção da lei e da ordem na região para a qual eram designados - a mesma em que habitavam -, abrindo brechas para reafirmação de poderes e instauração de mandonismos locais.

Não apenas questões burocráticas aparecem nessa documentação policial. Voltando ao século XIX, leio uma ocorrência que nos aponta para um tema recorrente no cotidiano saltense desde tempos remotos: o rio enquanto assassino. Segue a transcrição literal, com termos e grafia originais, como acima:

“Aos 27 vinte e sete [sic] dias do mez de Outubro de anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil oito centos e oitenta e nove, nesta villa em a casa da Rua do Porto, as nove horas das manhã, presente o subdelegado em exercicio Paulo Pereira Mendes commigo escrivão de seu cargo abaixo assignado e as testemunhas, ahi estava o cadáver de Joaquim Alves de Oliveira que foi trasido do lugar denominado Areão no rio Tietê, onde havia fallecido de asphixia por submersão na occasião em que tomava banho. Do enterrogatorio feito aos seus companheiros resultou o seguinte: ser o fallecido cidadão Portugues, natural de Vila Nova de Gaia, de vinte e cinco annos de idade, casado na mesma cidade, tem dois filhos e é carpinteiro de profissão e chegou ao Brazil a trez mezes, mais ou menos, como consta do passaporte datado de vinte e seis de Julho do corrente anno. Nada mais havendo a declarar encerro este termo que commigo assigna o subdelegado e as testemunhas Francisco Laprega, João Monteiro de Arruda e Elisiano Torres. Eu João da Costa Coimbra escrivão da subdelegacia o escrevi.
João da Costa Coimbra”


"O AREIÃO", 1991
Lydia Dotta Lobo
Óleo s/ tela
50 x 80 cm
Acervo particular Valter Rossi

[Publicado originalmente no Jornal Voz da Cidade (Salto, SP), em 03.11.07]

Nenhum comentário:

Ouça o hino da cidade, "Salto Canção", na gravação de 1966