27 de novembro de 2009

O livro esquecido de Tancredo do Amaral

A escola mais antiga de Salto, ainda hoje em atividade, é a Escola Estadual Professor Tancredo do Amaral. Ela foi criada por meio de decreto estadual de 20/10/1913, sob a denominação Grupo Escolar de Salto de Ytu, e iniciou suas atividades no dia 28 daquele mês. Em sua origem, reuniu 8 escolas espalhadas pelo município e criou mais duas classes, totalizando 407 matrículas em seu primeiro ano de funcionamento.

O Grupo Escolar de Salto recebeu o nome de Tancredo do Amaral apenas em 21 de abril de 1932. Tratava-se de uma homenagem ao primeiro professor formado a lecionar em Salto. O paulistano Tancredo Leite do Amaral Coutinho diplomou-se pela Escola Normal da Capital em 1887. Lecionou por 2 anos em Salto, logo que se formou. Em 1906, formado em Direito, passou a integrar o quadro de funcionários do Ministério Público. Anos depois foi nomeado Juiz de Direito da Comarca de Santa Isabel, onde se aposentou em 1923. Faleceu em Santo Bernardo do Campo, em 1928.

Ao longo da vida Tancredo foi crítico teatral, fez parte da redação do jornal Correio Paulistano e publicou livros didáticos, como História de São Paulo ensinada pela biografia de seus vultos mais notáveis. Esta é sua obra de maior relevo. Tal publicação é de 1895 e foi editada por Alves & Cia. Destinava-se “aos estabelecimentos de instrução popular”, enquadrando-se no segmento de “educação cívica”. No primeiro capítulo, Tancredo versa sobre “Como deve ser estudada a história”, num texto bastante peculiar, carregado de conceitos caros a ele e aos seus contemporâneos, que podem até nos parecer inocentes, hoje: “As nações, meus jovens estudantes, que são grandes agrupamentos de famílias que habitam um território determinado, com certa denominação, e que possuem um governo que dirige, tem a sua história, que é o conjunto dos fatos mais ou menos notáveis, que se ligam ao seu desenvolvimento e ao seu progresso, desde o começo de sua organização. A história de um povo, porém, que é, senão a história dos seus grandes homens, dos seus vultos mais notáveis, que têm trabalhado pelo ideal humano, que é o aperfeiçoamento sempre crescente, o progresso em uma palavra? Que é a história de um país, senão a história de cada um, empregando a sua inteligência e o seu labor nos diversos ramos da atividade humana para elevar o seu torrão natal, a sua Pátria, para honrar a Humanidade?”

O livro divide-se em quatro partes. Na Parte Primeira, “Preliminares”, trata-se de como se deve estudar a história, da origem do povo paulista, e se faz, ainda, uma descrição física de São Paulo, tratando-se também de sua fauna e flora. Na Parte Segunda, nomeada “São Paulo no domínio da metrópole”, alguns aspectos da história colonial paulista, bem como biografias associadas a esse período, dão o tom da narrativa. É a seção mais bem trabalhada e interessante do livro, na qual a figura dos bandeirantes é posta em destaque, sendo vários deles biografados sucintamente. Na Parte Terceira, “São Paulo no regime do Império”, sujeitos como Libero Badaró, o padre Diogo Antonio Feijó, o pintor Almeida Júnior e o músico Carlos Gomes são lembrados. A Parte Quarta e última trata, fundamentalmente, da história recente à época da publicação, e exalta figuras, muitas das quais com grande destaque no cenário político daquele final de século, como Rangel Pestana, Bernardino de Campos, Cerqueira César e Cesário Motta Júnior – este, inclusive, é a quem Tancredo dedica o livro. A seguir, transcrevo uma das biografias, a título de exemplo:

BARTOLOMEU BUENO DA SILVA, O ANHANGUERA

Nasceu na vila de Paranaíba e era filho de Francisco Bueno, sobrinho de Amador Bueno da Ribeira e de D. Filippa Vaz. Em 1682 este notável sertanista, à frente de numerosa bandeira, invadiu os sertões onde se achava a famosa tribo Goyá que habitava as terras mais ocidentais de Minas e São Paulo, descobrindo que havia ouro ali, por ter observado que as mulheres indígenas ornavam a cabeça com folhetas daquele metal. Antes de Bartolomeu Bueno, já diversos bandeirantes paulistas haviam explorado quase todo o sertão dos hoje estados de Goiás e Mato Grosso, porém sem resultado. Bueno com facilidade sujeitou a tribo que acabava de encontrar, por ser pouco bravia, e regressou a São Paulo com grande número de índios e muito ouro. Nessa excursão levou consigo um seu filho menor, que mais tarde descobriu as minas achadas por seu pai. Convém aqui narrar o estratagema de que se serviu Bueno para arrancar dos índios a declaração do lugar onde existia ouro. Lançou fogo a um vaso de aguardente, que fez explosão; e os índios aterrados foram compelidos a satisfazer os seus desejos, recebendo então Bueno dos mesmos o nome de Anhanguera, que quer dizer Diabo Velho. Pedro Taques, escritor conceituado, também refere que Bueno tinha um olho furado e que foi daí que lhe veio tal denominação. Foi casado em primeiras núpcias com D. Isabel Cardoso e em segunda com D. Maria de Moraes, deixando do primeiro consórcio nove filhos. Faleceu no lugar que foi seu berço, em fins do século XVII.


Folha de rosto da referida publicação de Tancredo, de 1895.

18 de novembro de 2009

Oradores saltenses do século XX

Oswaldo de Souza Aguirre (1896-1965)
Nasceu e faleceu em Santo André/SP, mas viveu a maior parte de sua vida em Salto, entre 1920 e 1950, onde foi sepultado. Foi escrivão de polícia no antigo prédio que abrigava a cadeia e a delegacia, na Avenida D. Pedro II, no local em que hoje se encontra o Fórum. Zeloso cumpridor de seu trabalho, também obteve destaque na comunidade saltense como orador eloqüente e sempre solicitado nos eventos cívicos ou quando da visita a Salto de autoridades de destaque.

Seu nome está fortemente associado à história da imprensa saltense, tendo colaborado em diversos jornais da cidade, a exemplo de O Ferrão, O Serrote, O Argus, O Povo, O Trabalhador. Foi ainda redator de O Saltense e diretor do Correio de Salto. Dentre seus escritos encontram-se até mesmo poesias. A sala de imprensa da Prefeitura de Salto, até a alguns anos atrás, recebia o seu nome – homenagem prestada em 1967. Foi diretor do clube Ideal, em 1928. Estava rotineiramente envolvido com as atividades das diversas sociedades e clubes locais.


Inauguração da sala de imprensa Oswaldo de Souza Aguirre, com a presença de Archimedes Lammoglia, Joseano Costa Pinto e Paulo Maluf, 1967.

Hélio Steffen (1923-1984)
Foi vereador de Salto por dois mandatos e prefeito entre 1956 e 1959. Durante os mais de trinta anos em que participou ativamente da vida social e política saltense, Hélio Steffen notabilizou-se como excelente orador, discursando em inúmeros eventos da comunidade ao longo de sua vida. Nasceu na Fazenda Cruz Alta, município de Indaiatuba, sendo filho de Christina Clemente e Eduardo Steffen. Veio para Salto ainda criança, estudando no Grupo Escolar Tancredo do Amaral. Posteriormente, estudou em Itu, na Escola Normal Regente Feijó, instituição na qual se formou professor, em 1950. Dez anos mais tarde, pela Faculdade de Direito de Niterói, diplomou-se advogado.

A partir de 1940 trabalhou como locutor numa rádio de Sorocaba, tendo passado também pela Rádio Mayrink Veiga, no Rio de Janeiro. No final dessa década, de volta a Salto, Steffen participou do Grêmio Teatral Antonio Vieira Tavares, então existente. Aprovado num concurso estadual, em 1951, foi trabalhar como fiscal de rendas na região de Dracena/SP, serviço ao qual se manteve ligado até se aposentar, por problemas de saúde. Em 1956 casou-se com Haydée Leal Nunes, tendo dois filhos.

Como prefeito, Steffen foi responsável por algumas ações significativas para a Salto daqueles tempos, como a construção da Escola Prof. Cláudio Ribeiro da Silva, o asfaltamento da estrada velha Salto-Itu e a aquisição do terreno no qual seria instalada a Escola Prof. Acylino do Amaral Gurgel, dentre outros órgãos, no Bela Vista. A estação de tratamento de água também foi viabilizada no seu mandato. Como empresário, dedicou-se ao ramo da cerâmica vermelha desde 1957.


Hélio Steffen, prefeito de Salto no final da década de 1950.

6 de novembro de 2009

Tipos populares saltenses

Urubatão: figura conhecidíssima na cidade nas décadas de 1970 e 1980, Urubatão, como era popularmente chamado, nasceu em Porto Feliz e se chamava Waldomiro Corrêa da Cruz. Veio para Salto por volta de 1956. Trabalhou em diversos locais na cidade, como na serraria de Walter Carra, na Prefeitura de Salto no calçamento de ruas e na indústria Picchi. Trabalhou ainda na antiga Sorocabana, ajudando a descarregar vagões de madeira. Era famoso por suas gargalhadas escandalosas que seguiam as piadas que sempre estava a contar. Foi dado como morto quando, em meados de 1983, desapareceu de Salto por algum tempo, publicando-se, à época, cartas lamentando sua morte nos jornais locais. Quando reapareceu na cidade, assustou muita gente. Urubatão faleceu de fato em 2002, deixando um legado de inúmeras histórias aos que com ele conviveram e diversas crônicas às quais serviu de inspiração.

Zé Batatão:
seu verdadeiro nome era José Fernandes de Oliveira. Nascido em Monte Mor em 1873, ainda bem jovem veio para Salto. Casou-se com Maria Cecília de Jesus e morou sempre nas proximidades da Igreja Matriz, mas residiu por algum tempo também na Vila Vicentina. Trabalhava com a carrocinha da Prefeitura, fazendo pequenos carretos e foi de grande valia quando das epidemias que assolaram Salto em 1917, 1921 e 1924, disponibilizando sua carroça tanto para transportar vítimas da varíola e da febre amarela para o hospital de isolamento como os mortos para o cemitério local. Foi zelador da Igreja Matriz e presença imprescindível nas procissões do Senhor Morto, como carregador da cadeira da Verônica, e nas cerimônias de lava-pés, representando um dos apóstolos. Andava sempre com um porrete de madeira que servia para dispersar a chusma de moleques que o atormentava com o apelido por ele detestado. Acabou falecendo no Abrigo de Velhos em 1964, para onde foi levado após o falecimento de Nhá Cicília. Zé Batatão foi indiscutivelmente um dos tipos mais populares que a cidade já teve.


Jacomim:
Outro tipo que foi muito popular em Salto e também muito ligado à Igreja, ao padre João da Silva Couto e ao Círculo Católico, foi Giácomo Guidi, o Jacomim. Freqüentador assíduo da Chácara Vendramini juntamente com o Maestro Zequinha Marques e os circulistas, era dado a fazer discursos, nos quais sempre misturava algumas palavras em latim, nem sempre corretas, assimiladas através da convivência com os padres da época. A maior popularidade de Jacomim, no entanto, veio de um fato curioso, acontecido por volta de 1918, durante uma epidemia de gripe espanhola que atingiu a cidade. Ele adoeceu e foi dado como morto, ficando o seu corpo no velório para ser sepultado na manhã seguinte. Lá pelas tantas, eis que o rapaz, então com nove anos, aparece em casa, para o espanto geral da população da cidade. Jacomim faleceu somente aos 52 anos, na periferia de São Paulo.


Julinho:
Homem que aos domingos vinha da zona rural, onde morava, para a cidade. Sempre muito sujo e maltrapilho, saboreando restos de frutas que recolhia das latas de lixo à porta das quitandas, acabou seus dias no Asilo de Velhos, onde evitava o banho e a cadeira de barbeiro. Taragim: Tipo popular que vagava pelas ruas da cidade, o mulato João Taragim introduziu no linguajar comum de Salto uma expressão para cumprimentar as pessoas: o famoso “Ó”, que acabou virando mania dos saltenses. Trabalhou numa granja, mas não conseguia dominar o vício da bebida e, aos domingos, geralmente amarrava bebedeiras, as quais, às vezes, duravam dias a fio. Perambulava pela cidade, inofensivo, cantarolando uns versos que ficaram no folclore geral: “Taragim comeu formiga... Taragim não come mais”. Faleceu no Abrigo de Velhos. Chicão: Chamava-se Francisco de Paula. Naqueles esfrangalhados chinelos de sola de corda, com o seu inseparável cesto de amendoins carregados por braços magros, ele encarnava um tipo engraçado por excelência. Infalível às portas dos cinemas desde os tempos do Cine Pavilhão, do Verdi, do Rio Branco e do São Bento, estava sempre apregoando o conhecido estribilho: “Torradinho... amendoim...”. João Perna-de-pau: Sujeito que puxava a perna direita que tinha sido amputada e fora substituída por um grotesco aparelho ortopédico de madeira. Fazia carretos com sua carrocinha de mão, produto de uma subscrição popular. Morreu afogado no rio Jundiaí. Xuxo: Era um homem manco de nascença, que arrastava suas pernas atrofiadas e estava sempre implicando com a turma de moleques que o enxovalhava. Saladino: Era um sujeito alto, de andar compassado e olhos esgueirados. Passava temporadas em Salto, mas na realidade era de Itu. Era o terror da criançada da época. Sempre cumprimentando todo mundo, andava pelos lados da Estação, sorrindo, na sua quase demência. Gostava muito de falar sobre batalhas da Guerra do Paraguai.


Zabé:
Tipo que mal conseguia articular algumas poucas palavras. Causava espanto nas pessoas da cidade quando se punha a dançar e cantar. Sempre com sua trouxa de roupas ao lado e sua inseparável marmita, vestia várias peças de roupa ao mesmo tempo: calças, camisas, blusas, meias e paletós. Dizem que teria freqüentado o Primeiro Grupo Escolar de Salto nos primeiros dias de sua instalação. Andava pelas ruas a cantarolar sempre o mesmo refrão: “Terezinha!... de Jesus!... abre a porta!... e acende a luz!” - e deliciava-se de tanto rir, vendo a garotada a sua volta a fazer roda e bater palmas para ele. Maria da Pinga: Era uma senhora que vagava pela cidade, sem destino, sempre acompanhada de um cachorro. Levava sempre uma garrafa com pinga debaixo da axila ou dentro do bolso do casaco e, pela mão, puxava uma cordinha com uma lata velha ou uma caixa de fósforos amarrada na ponta. Ao ser avistada pelos freqüentadores dos bares da cidade, ouvia sempre a pergunta: “E aí, Maria, vai uma pinga?”


Guerino Rato Branco:
Sujeito magro e muito vermelho que imitava a fala cantada dos paulistanos dos anos 30. Ao caminhar pela cidade, indagava sempre a quem passava: “Paga uma pinga aí?” Faleceu em frente à porta de um bar localizado na Vila Nova. Bastião Raposa: Era um negro de cabelo oxigenado, sobrinho da cozinheira de uma pensão da Rua Rui Barbosa. Bastião participou da Revolução de 1932 e vivia a contar suas proezas nos campos de treinamento e de batalha. Ferrinho: Rapaz que andava pela cidade sempre de calças arregaçadas, resmungando. Em dias de chuva, gostava de pisotear as poças d'água que corriam nas sarjetas, esbravejando. Era freqüentador assíduo do Parque Infantil, aonde ia todo dia para brincar e tomar a merenda oferecida lá. Negra Ada: Era uma negra velha que não fazia mal a ninguém. Costumava invadir o quintal das casas para apanhar frutas meio apodrecidas que caiam das árvores, das quais se alimentava.


Zé Pé-no-chão:
Fazendo jus à sua alcunha, constava que Zé nunca tinha conseguido calçar sapatos. Trabalhava como pintor de painéis que eram distribuídos pelas esquinas da cidade, divulgando os filmes da semana. Esmerava-se, sobretudo, em copiar a grafia dos nomes corretos dos artistas estrangeiros, gabando-se de tal habilidade. Maminho: Rapaz excepcional que morava com os pais no casarão que existia na esquina das ruas 9 de Julho e Rui Barbosa. Era baixo, gordo, atarracado, calvo e ficava na janela do casarão, vendo o movimento da rua. Por vezes, tomado de certa irritação, cuspia ou jogava objetos nas pessoas que passavam pela calçada. Minhocão: Seu nome verdadeiro é Lázaro Imperatto. Morador de Salto há muito tempo, é vendedor de algodão-doce e tem hoje por volta de 75 anos. Figura folclórica da cidade, Minhocão anda pelas ruas equilibrando a sua vara de algodão doce, com a qual executa diversos tipos de malabarismo para alegrar as crianças e fregueses, hoje com menos habilidade, por conta da idade avançada. Afirma de que foi o inventor do famoso sorvetão de Itu. Chegou a participar do Programa do Chacrinha, na rede Globo.


Ainda podemos citar outros tipos populares que já passaram pela cidade, como o negro Durico, que se dizia grande filósofo; Roquinho, filho de Chicão, que o sucedeu na profissão, nos trajes, no físico, mas não apregoava a sua mercadoria e ficava horas em frente aos estabelecimentos comerciais com sua cesta de amendoins, sem dizer uma única palavra; Glorinha, senhora mulata, sempre muito suja e com os cabelos desgrenhados, que pedia de casa em casa e não dizia coisa-com-coisa; Zé da Catarina, que andava pela cidade a cantar; Benedito Come-fogo, um ituano pardo que era pintor de paredes e um dia, embriagado, chegou a dormir encostado a uma porta que tinha acabado de pintar e acabou ficando preso a ela. Temos, hoje, o Zé do Algodão Doce, que milita no mesmo ofício de Minhocão, com o diferencial de “promover eventos” e ter alguns CDs de música gravados em sua própria homenagem, os quais são por ele vendidos a cinco reais pelas ruas centrais de Salto.

Ouça o hino da cidade, "Salto Canção", na gravação de 1966