13 de dezembro de 2007

O pão, o leite e as verduras

O livro O município de Salto [1959], do então médico sanitarista do Centro de Saúde de Salto, Dr. Adriano Randi, é um precioso levantamento de nossa cidade do final da década de cinqüenta. Suas 125 páginas, impressas no Rio de Janeiro através do serviço gráfico do IBGE, apresentam detalhes que possibilitam uma narrativa da cidade num nível, eu diria, microscópico. Deixando de lado o trocadilho diante da presença de laudos técnicos sobre a qualidade da água que os cidadãos saltenses recebiam em seus lares, chamam-me mais a atenção os informes sociais. Como exemplo, há a descrição da rotina da Creche mantida pela Brasital, com a freqüência das mães, bem como a listagem – e o desenho de um mapa – das “escolas rurais do município”, que Randi cria levantando uma a uma o número de alunos, a distância do centro da cidade e a professora responsável pela direção do estabelecimento. Na mesma linha vem a lista dos hotéis aqui existentes, onde se preocupa em citar o número de quartos, “leitos”, “instalações sanitárias” e “preço da diária”. Suas listas são mais que um guia para o viajante no tempo...

Randi, como sanitarista que era, acreditou ser relevante detalhar a origem e a qualidade dos alimentos consumidos pelos saltenses. Sobre “o leite todo, consumido na cidade”, dizia ser “proveniente de pequenas fazendas localizadas na zona rural do próprio município”. O fornecimento era “feito por uma única leiteira [aqui] estabelecida”, e a “distribuição na casa dos fregueses, [que ocorria] por meio de um carrinho adaptado, puxado a burro”, era feita “por cerca de 10 leiteiros”. Não havia métodos de resfriamento e de pasteurização, vindo o leite diretamente das Fazendas Guarujá, Barnabé, Monte Alto ou da Granja Santo Antônio para o núcleo urbano.

O “comércio de pão” era “feito pelas padarias” que os vendiam “em balcão e em carrinhos para entrega domiciliar”. Os endereços de sete padarias constam na lista elaborada, sendo seus proprietários: Narciso João Conte, Cooperativa Operária Saltense, Irmãos Bergamo, Pittori & Filhos, Domingos A. Lammoglia, Luiz Piaia & Filhos e Ernesto Bethiol.

Há ainda menção ao “fornecimento de verduras” por “hortas e chácaras nas imediações da cidade” como sendo pequeno, vindo a “maior parte” dos gêneros dos municípios vizinhos. Os “métodos de cultura” eram “os mais rudimentares: quase a totalidade (...) [usando] somente enxada, pouca adubação e rega manual com latões e regadores portáteis”. A distribuição ficava a cargo das quitandas, cujos proprietários são citados: João Navarro Filho, Celeste Trentin, Hideo Figita, Alcides Calefo, Expedito Thereza, Shogo Handa, José A. Fabri, José Plácido Ferraz do Amaral e Antonio Rossi. Randi observa ainda que alguns “chacareiros” vendiam “seus produtos diretamente ao consumidor por meio de carrinhos puxados a burro”. Mas muito além do pão, do leite e das verduras vai o levantamento do Dr. Randi... Tomando-o hoje como documento de época, é uma das mais instigantes fontes.


O citado mapa com a localização das escolas rurais de Salto e as respectivas vias de acesso, 1959.

Identificação das escolas:

1) Escola Mista José de Paula Santos - Bairro Olaria
2) Escola Mista Boa Esperança - Bairro Boa Esperança
3) Escola Mista Ana Rita Felizola - Fazenda Santa Cruz
4) Escola Mista João Batista Cezar - Bairro Catingueiro
5) Escola Mista Buru - Bairro do Buru
6) Escola Mista Claudio R. da Silva - Bairro Três Cruzes
7) Escola Mista Maria Miranda Campos - Bairro Boa Vista
8) Escola Mista Acylino Amaral Gurgel - Bairro Atuaú
9) Escola Mista Getúlio Vargas - Bairro Campo Grande

6 de dezembro de 2007

Éramos todos de Salto...

Tinha eu na memória, até bem pouco tempo, apenas parte da composição que segue:
Sou sapeca, sou sapeca perereca,
Não se faça, não se faça de rogado.
Sou de Salto, sou de Salto, sou saltense,
Sapeco o laço no caboclo mais valente.

Viva, viva sempre o nosso presidente,
Em toda parte exigido e necessário.
Sua bengala é seu bastão, sua patente.
Viva, viva o bondoso “seu” Hilário...

Não se pode pôr de parte o nosso amado,
Professor que é tão bondoso e tão querido,
Que este Salto quer tornar quase encantado,
O prefeito tão gentil – José Garrido.

Por vezes me indaguei, sem contudo me preocupar em levantar informações e tampouco recorrer aos mais velhos, qual seria a continuidade daquele fragmento que vez ou outra me vinha à mente: “sou de Salto, sou saltense”. Apenas me lembrava de tê-lo ouvido em fita VHS do ano escolar de 1987, quando eu era aluno da extinta escola infantil Tico e Teco. Não me lembro de cantar a quadrinha, mas me vejo no vídeo a cantá-la, aos cinco anos de idade.

Eis que folheando a Revista Ilustrada de “O Trabalhador” – editada em 1952 em comemoração ao 257º aniversário da cidade de Salto e 3º de fundação de “O Trabalhador”, vejo em uma das páginas, para minha surpresa, a tal composição, ali chamada de quadrinha. Até então, imaginava eu que a letra fosse criação da minha professora de música na época, cujo nome me foge. No artigo da Revista, a letra que acima transcrevi aparece como exemplo do “entusiasmo” e “bem querer do povo Saltense para com o Major [Garrido]”, sendo uma das que eram “feitas em sua homenagem e cantadas por todos”.

José Garrido foi prefeito de Salto por menos de dois anos, entre 1931 e 1932, sendo nomeado pelo novo governo federal, na leva de prefeitos militares após a chamada Revolução de 1930. Este golpe militar instaurou a ditadura (ou “governo provisório”). No poder, Getúlio Vargas fechou o Congresso Nacional, destituiu as Assembléias Estaduais e Câmaras Municipais, anulou a Constituição vigente (de 1891) e substituiu vereadores, prefeitos, governadores e deputados por delegados de polícia e interventores militares.

Em Salto, Hilário Ferrari [1880-1968] era o presidente da Câmara Municipal desde 1929. Em 30 de outubro de 1930, uma junta governativa, liderada por Augusto Kleeberg, dissolve a Câmara. Garrido assume em janeiro do ano seguinte, na posição de prefeito. De acordo com a Revista, na letra da quadrinha, o Hilário mencionado é o ex-presidente da Câmara, então na função de presidente do C.P.E.F.M. (Centro Popular de Educação Física e Moral), criado e incentivado pelo próprio Garrido – um indício de cooptação.

Diz-nos muito a segunda estrofe, que propõe uma equivalência entre Garrido e Ferrari, diante da força política do então presidente do Centro, “exigido e necessário”, ao lhe sugerir uma “patente” de fato. Em suma, num momento de domínio militar, tem o civil local força equivalente, e a “begala” surge ao mesmo tempo como símbolo pessoal e marca de prevalência...

Mas que coisa insólita cantar a tal quadrinha em 1987!


Major Garrido, 1932.
[rara foto em que aparece barbado]
Acervo do Museu da Cidade de Salto

Ouça o hino da cidade, "Salto Canção", na gravação de 1966