23 de maio de 2011

Meu avô alfaiate

Depois que as pessoas morrem, quase sempre a memória que se tem delas recebe um impacto positivo. De certa forma passamos a enxergar a realidade vivida de forma parcial, distorcendo-a e fazendo seleções, deliberadas ou não. Contudo, isso não deixa de ser parte da realidade. Pensando nisso e por conta da data, resolvi escrever um pouco sobre as memórias que tenho de meu falecido avô Joaquim, um alfaiate, que se foi há um ano.

Embora hoje eu não viva mais em Salto, sempre que estiver em minha terra natal e transitar pelas imediações da Praça XV de Novembro ou pela Rua Rui Barbosa, será inevitável procurar, quase que mecanicamente, por aquela figura magra e de cabeça branca. Afinal, em seus últimos anos, era esse o espaço de trânsito do velho alfaiate. Antes disso, quando eu ainda era garoto, passar por sua alfaiataria – que era também a sua residência, lá no final da já citada rua – era hábito espiar pela janela para ver sua cabeça já de cabelos brancos (como sempre foi para mim) com os olhos atentos na máquina de costura, trabalhando. Essa mesma máquina, muito antiga, hoje é minha. Dado meu gosto por coisas antigas, disse-me pouco antes de falecer que queria que eu ficasse com ela. Guardo-a com carinho e reverência, como uma pequena herança.

Mas são as lembranças dele enquanto eu era criança que mais me vêm à memória. Como esquecer as pescarias no rio Buru, no sítio de meu outro avô, das quais ele sempre participava? Era um programa muito aguardado e para o dia todo. Aquele senhor tornava-se nessas ocasiões extremamente divertido e alegre. Sempre cantarolava no caminho para o sítio, pelas estradas tortuosas e poeirentas do Buru, principalmente para brincar com meu irmão, que era mais próximo dele, acredito. Ainda hoje lembramos das letras daquelas canções que mal sabemos de onde saíam – se eram invenções dele ou se tinha ouvido em algum lugar, em tempos remotos. E como ele gostava de pescar! Soube muito depois que isso era vício antigo, que chegava a fazer longas caminhadas em busca de uma lagoa em Mairinque, onde residiu por alguns anos, arrastando toda a família consigo.

Outro vício dele era fumar, embora tenha abandonado-o duas décadas antes de falecer. Ainda assim recordo-me da figura austera que tinha a sua poltrona sempre reservada na sala, ladeada por um cinzeiro metálico, com pedestal, peça muito antiga e pela qual procurei em vão por sua casa, depois que faleceu. Dessa mesma época lembro-me de outro hábito dele, que sempre achei extremamente curioso: o de jogar paciência depois do trabalho e, antes, enrolar um cigarro de palha com fumo de corda. Todos os apetrechos desse pequeno ritual eram guardados numa lata que eu sempre remexia quando visitava a casa de meus avós.

Quero ter para mim que foi o melhor alfaiate que Salto já teve, e alguns contemporâneos seus até que dizem isso não está de todo errado. Ainda me servem as duas calças que confeccionou para mim, há alguns anos. Dificilmente vou me livrar delas. À época em que as encomendei, sequer era necessário eu tê-las. Mas ciente de que não seria por muito tempo que o velho alfaiate ainda teria forças e ânimo para continuar costurando, passei por sua casa e levei-o comigo até a loja Coltro, na Rua Rio Branco, para comprar tecidos da melhor qualidade. Escolhi as cores, ele examinou os tecidos, e levamos os dois cortes. Em uma semana as calças estavam prontas. Não tenho certeza, mas acho que foram as últimas peças que ele costurou, pois pouco tempo depois me disse que tinha dado algumas réguas e outros instrumentos de alfaiate para um de seus irmãos, que ainda hoje milita no ofício.

E esse ofício de alfaiate era algo muito tradicional na família. Júlio de Aguiar Frias, seu pai e meu bisavô, também tinha sido alfaiate em Salto, por toda uma vida. Segundo me contou uma vez, seu pai tinha aprendido o ofício com o italiano Santo Lelli, pai de Josepha Lelli, com quem meu bisavô Júlio acabou se casando. Assim, meu bisavô, que aprendeu o ofício com meu trisavô, passou os ensinamentos ao meu avô. Em que pese o lado materno ser todo italiano, meu avô tinha um nome essencialmente português: Joaquim Manoel Frias.

As memórias dos tempos mais recentes trazem um desfile de aniversário da cidade de Salto, em que um dos carros – elaborado pelo colégio no qual eu era professor – homenageou os antigos alfaiates. Foi um pouco difícil convencê-lo a participar, mas participou. E tenho a certeza de que se sentiu grato. Nesses últimos anos, quando passei a publicar um texto ou outro nos jornais, tinha nele um fiel leitor. Aliás, era ele um leitor por hábito. E tinha uma caligrafia invejável, aquela da Escola Anita, que os saltenses mais antigos bem conhecem. Guardo comigo como lembrança uma cópia do Responsório de Santo Antônio, na letra dele. E a esperança de que esteja em paz e fazendo algo que goste, onde estiver.

Joaquim Manoel Frias (1934 - 2010)

Ouça o hino da cidade, "Salto Canção", na gravação de 1966