26 de julho de 2014

Os pássaros taperás e a cidade de Salto

Vejamos as principais referências documentais relativas à ave denominada taperá e de sua apropriação enquanto elemento simbólico por parte da comunidade saltense.

Segundo o Dicionário Aurélio :

TAPERÁ [Do tupi = ‘saído da tapera’.] 

Substantivo feminino. 
1. Zool. Ave passeriforme, hirundinídea (Phaeoprogne tapera fusca), que ocorre em toda a América do Sul cisandina. A coloração é pardo-acinzentada, mais clara na parte inferior, com o meio do peito e o abdome brancos. [Sin.: andorinha-do-campo, chabó, major.]

Entre as fendas dos afloramentos graníticos que constituem a Ilha da Usina da EMAE, na margem esquerda do rio Tietê, era muito comum a presença dos pássaros denominados taperás, especialmente nas proximidades na cachoeira. Esses parentes próximos das andorinhas faziam dessas fendas seu local de repouso. Viajantes europeus em meados do século XIX já mencionavam em seus textos a existência dessas aves. O escritor viajante português Augusto-Emílio Zaluar [1826-1882], em seu livro Peregrinação pela Província de São Paulo (1860-1861), em meio aos parágrafos que dedicou a sua passagem pelos arredores de Itu, legou-nos uma bela descrição envolvendo os taperás de Salto:

“Lançando os olhos ao horizonte, vimos vir lá de seus extremos confins uma espécie de nuvem negra e compacta, que se avançava com rapidez nos ares, mudando apenas ligeiramente de forma. Era um imenso bando dessa espécie de andorinhas a que se dá aqui o nome de taperás.
Quando pairou acima de nossas cabeças aquela massa escura, abrindo-se pelo meio, formou um círculo de largas dimensões, e começou a girar vertiginoso, até que, voltando outra vez à sua forma primitiva, tornou a afastar-se tão alto e tão longe que a perdemos de vista. Pouco depois volveu, fez a mesma evolução e tornou a retirar-se, repetindo ainda umas duas ou três vezes este movimento aéreo.
Como, porém, a noite se aproximasse, e nós continuássemos em nossa posição imóvel sobre os rochedos, as taperás começaram a cortar com um vôo oblíquo o espaço que as separava da terra, e a esconder-se nas fendas escuras das rochas que formam o parapeito oposto do outro lado do rio. Parecia na violência e silvo uma chuva de setas, que, disparadas de um arco invisível, se cruzavam sobre nossas cabeças.
Era-nos preciso a pena do célebre naturalista americano Audubon para podermos dar uma idéia deste quadro!
Quando as fendas dos rochedos estavam já cheias de taperás, o que tornava ainda mais escuros os interstícios das pedras denegridas, um de nossos companheiros, apontando a espingarda de dois canos, carregada de tariva, à fenda onde havia maior porção dessas aves, disparou dois tiros, um após o outro, cujo estampido foi reboando lugubremente de penedo em penedo até se perder no fragor das águas.
Senti nesse momento confranger-se-me o coração. As avezinhas que escaparam ao chumbo levantaram vôo apavoradas, e as que ficaram mortas ou feridas, caindo na correnteza, foram enoveladas na espuma, aparecendo de vez em quando boiando à tona d’água, para depois sumirem-se de todo, sepultadas no abismo.
Pobres taperás, antes não fôssemos perturbar a sua existência inocente!”

Cerca de duas décadas mais tarde, o cuidado com os taperás foi preocupação do industrial e político local Francisco Fernando de Barros Júnior [1856-1918] - o doutor Barros Júnior, cognominado “Pai dos Saltenses”. Em sessão da Câmara Municipal de Itu, em 1883, Barros Júnior solicitava: “Indico que se acrescente ao art. 45 o parágrafo único seguinte: Fica proibida a matança dos pássaros denominados Taperás do Salto. O contraventor pagará 5$000 de multa”.

Auguste de Saint-Hilaire [1779-1853], que esteve diante do Salto em 1819, em seu livro Viagem à Província de São Paulo fez a mais antiga referência aos taperás de que se tem notícia. Embora não denomine as aves citadas como taperás, propriamente, sem dúvida trata-se dessa ave:

“A fim de ter tempo de examinar à vontade esse belo espetáculo eu tinha pedido ao capelão (...) para guardar os meus burros em sua propriedade, com o que ele concordou amavelmente. Esse padre contou-me que, quando viera para ali havia quarenta anos, a rocha de onde o rio se despeja se projetava para frente e era escavada como se fosse uma calha; a água ao cair descrevia um arco, e as andorinhas costumavam passar em revoada sob ele, para cá e para lá. Pouco a pouco, porém, a saliência na rocha foi sendo desgastada pela passagem da água, até desaparecer por completamente. Vi ainda um grande número de andorinhas ao redor da cachoeira. Antes da queda d’água, só se encontram no Tietê peixes de espécies pequenas, mas abaixo dela pescam-se peixes de tamanho considerável, como dourados, etc.”

Nos últimos anos, com a chegada da poluição no rio Tietê, a quantidade de taperás sobrevoando nossa cidade diminuiu consideravelmente. Contudo, por conta dos numerosos bandos dessas aves ao longo das décadas e séculos anteriores, elas se tornaram um símbolo de Salto, estando presentes no brasão de armas (vide figura 1 e taperás em destaque na figura 2), na bandeira e no hino da cidade, nos versos: “Salto! Da linda cascata, das praças floridas, dos bandos de taperás. Salto! Que eles encantam, voando e cantando pra lá e pra cá”, de autoria de José Francisco Archimedes Lammoglia [1920-1996].


Figura 1 - Brasão de Armas Municipal


Figura 2 - Detalhe dos taperás presentes no Brasão

Portanto, os [bandos de] taperás são emblema heráldico de afeição à própria terra e de igualdade entre os cidadãos, sendo tais aves o símbolo de Salto, intimamente ligadas às tradições locais.

Nota: Quase nenhum saltense diz "as [aves] taperás", mas sim "os [pássaros] taperás". Portanto, é de se acreditar que o s termos "bando de" ou "pássaros" esteja subentendido, e não "aves".


Ouça o hino da cidade, "Salto Canção", na gravação de 1966