2 de janeiro de 2008

Relato de 1819

Tratemos dos relatos de viajantes. Abaixo, transcrevo um relato que, para a Salto da primeira metade do século XIX, é dos mais importantes. Os relatos constituem um gênero freqüentemente utilizado como fonte em trabalhos de História. Esse tipo de literatura fez sucesso durante muito tempo, numa época em que viagens para lugares distantes não eram tão simples como hoje. Aliada às barreiras de locomoção estava uma peculiar curiosidade em relação aos lugares, culturas e povos que viviam para além da Europa. Existia um forte apelo editorial em torno dos livros de viagem. No século XIX, tal literatura era tida em alta conta – até mesmo por questões educativas – e a América do Sul era praticamente um outro mundo: desconhecido e pitoresco. Nesse sentido, a atração pela natureza tropical é uma constante – e o Salto de Itu aparece com certa freqüência no discurso dos viajantes europeus que passavam pela então Província de São Paulo.

Um dos primeiros foi o francês Augustin de Saint-Hilaire, que esteve diante do Salto em 1819. Vejamos como o viajante descreve nossa cachoeira em seu livro Viagem à Província de São Paulo:

Não querendo deixar Itu sem ver a cachoeira à qual a cidade deve seu nome, dirigi-me até lá acompanhado do meu tropeiro, José Mariano. Num trecho de cerca de uma légua até a beira do Tietê, que corta a estrada de Itu a Campinas, percorri uma região outrora coberta de matas virgens mas na qual só se vêem capoeiras, atualmente. Vi vários engenhos de açúcar pelo caminho.

Chegando ao Tietê, encontra-se uma ponte estreita, muito mal conservada e sem parapeito. A ponte é dividida em duas partes desiguais por uma ilha. A mais próxima da margem direita mede cerca de 48 passos de comprimento, a ilha mede 47 e a outra parte 120.

Nesse ponto o rio se desdobra, formando várias ilhas, as quais, como o próprio rio, são orladas de pedras negras que parecem empilhadas ordenadamente, compondo uma espécie de muro
de arrimo. Moitas de árvores e de arbustos de pitoresco efeito cobrem as ilhas, e tufos de orquídeas, crescendo entre as pedras, desabrocham em soberbos buquês de grandes flores purpurinas. Nas duas extremidades da ponte há uma venda e um pequeno rancho, e um pouco mais abaixo, à direita do rio, vê-se a capela de Nossa Senhora da Ponte [outra denominação por vezes atribuída à capela de N. S. do Monte Serrat], tendo ao lado a casa do capelão. Todo esse conjunto compõe uma paisagem muito bonita.

Passando sob a ponte, e apertada entre as pedras, a água do rio corre fazendo barulho. Um pouco abaixo há um monte de pedras e mais adiante fica a cachoeira. Depois de serpear celeremente por entre as pedras amontoadas, o rio lança-se de repente por um estreito canal, cercado de ambos os lados por uma muralha de pedras a pique, e dali se precipita de uma altura de 25 ou 30 pés com uma impetuosidade inconcebível e um estrondo suficientemente forte para ser ouvido na cidade de Itu. Batendo, na sua queda, cruzam e se misturam, formando uma confusa massa de espuma de um tom branco-ferruginoso e espalhando no ar miríades de gotículas que se juntam para compor uma densa cortina de névoa. Na base da cachoeira as águas tornam a encontrar pedras e ainda continuam a espumar durante um certo trecho.

A fim de ter tempo de examinar à vontade esse belo espetáculo eu tinha pedido ao capelão de Nossa S. de Ponte para guardar os meus burros em sua propriedade, com o que ele concordou amavelmente. Esse padre contou-me que, quando viera para ali havia quarenta anos, a rocha de onde o rio se despeja se projetava para frente e era escavada como se fosse uma calha; a água ao cair descrevia um arco, e as andorinhas costumavam passar em revoada sob ele, para cá e para lá. Pouco a pouco, porém, a saliência na rocha foi sendo desgastada pela passagem da água, até desaparecer por completamente. Vi ainda um grande número de andorinhas ao redor da cachoeira. Antes da queda d’água, só se encontram no Tietê peixes de espécies pequenas, mas abaixo dela pescam-se peixes de tamanho considerável, como dourados, etc.




Augustin de Saint-Hilaire (1779-1853)

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Ouça o hino da cidade, "Salto Canção", na gravação de 1966