20 de julho de 2009

Bairro do Buru

O texto abaixo é transcrição da matéria "Ah! Meu velho Buru...", de Valderez Antonio da Silva, originalmente publicada no Cidade Jornal (Salto/SP) em 8 de maio de 1989.


Capela de Nossa Senhora das Neves, padroeira do Bairro do Buru, 1989.

Primeiro, a chuva caía com alguma intensidade. Depois, a terra seca de uma longa e acentuada subida se transformava em traiçoeiro lamaçal. A seguir, vinha o tormento da gente simples, com suas charretes e carroças atoladas e a necessidade de se reunir os burros e cavalos disponíveis, para retirar do barro um veículo de cada vez, com muita paciência. Sem ajuda dos outros, ninguém saía do lugar, e o ribeirão que a tudo assistia, bem como a própria subida, acabaram ganhando o nome de Ajudante.

A cidade de Salto não ia além de onde hoje estão as ruas centrais e o Ajudante era apenas uma parte do longo caminho para um lugar cujo nome estava associado à própria idéia de distância, de calmaria, de mundo caboclo e afastado do progresso: Buru, o velho Buru, cujo coração reside na encruzilhada de dois caminhos rurais e onde se olham de frente uma pequena escola, uma velha capela e um velho armazém.

Na verdade, o Bairro do Buru tem dimensões e histórias que nem todos os saltenses conhecem e, muito menos, as novas gerações. Seus limites se estendem desde a divisa com os municípios de Indaiatuba e Elias Fausto, na altura do distrito de Cardeal (Buru de Cima), passando pela região onde está a Capela de Nossa Senhora das Neves (Buru do Meio), até atingir a velha estrada de terra que ruma para Capivari (Buru de Baixo).


Detalhe de levantamento topográfico de Salto, de 1931, de autoria de Henrique Castellari. Ao centro, a marcação da escola e da venda do Buru e as estradas para alguns sítios.


Nesse território agrupam-se pequenas e médias propriedades rurais, desde um tempo que se perde na história saltense. O fato é que o Buru está intimamente ligado a inúmeras e tradicionais famílias que, desde o século passado, ali viveram da lavoura e da pecuária, até se transferirem para a cidade, com o tempo e o progresso. Outros nunca ali viveram, mas possuíram terras que, em muitos casos, ainda conservam com carinho. Nomes como os das famílias Rocchi, Di Siervo, Betiol, Pitorri, Pacher, Santinon, Zanuni, Keiller, Góes, Bernardi (Fanti), Nicácio, Quaglino, Ferrari, Bracarense, Mosca, Stecca, Pavani, Ferraz e muitas outras.

Coisas de 1900 e das primeiras décadas do século, quando o algodão, a batata, o milho e o feijão eram vendidos no Salto, bem como as galinhas, porcos, ovos, e garantiam a vida de muita gente. Coisas de quando nenhum saltense possuía automóvel, como bem se recorda o saltense adotivo e apaixonado, Pedro Garavello. É ele quem evoca as felizes visitas ao Buru de então, para participar dos leilões e quermesses em prol da capela, quando todo o lugar vivia um saudoso clima de festa na roça.


A vendinha e os lampiões

A vida de todo o Buru sempre bateu mais forte dentro das paredes do velho armazém, da vendinha do Santinon. Dona Palmira, 76, viúva de Guilherme Santinon, relembra os cinqüenta anos durante os quais o estabelecimento esteve nas mãos de sua família. Em 1938 Guilherme e seus três irmãos adquiriram 6,5 alqueires de terra e o armazém, de uma família de turcos, os Ibraim.

Mantendo o costume, toda a gente da redondeza, ao longo de décadas, ali se abastecia de produtos alimentícios, calçados, fumo, ferramentas e uma infinidade de itens. “As compras a gente fazia em São Paulo, uma vez por mês”, lembra Palmira, frisando que o velho caminhão transitava penosamente pela antiga estrada de Pirapora e Santana de Parnaíba. E para as visitas à cidade, era acionado o cabriole ou o Ford 1928, cujo ruído chamava a atenção de meio mundo.

A melhor fatia das lembranças, porém, fica por conta do convívio amistoso entre os sitiantes, principalmente depois que os Santinon construíram um pequeno salão ao lado da venda. Ali se realizavam os animados bailes à luz de lampiões, e ao som de sanfoneiros de Salto, Cardeal e Elias Fausto. Outras cenas vêm à memória de dona Palmira, que fala saudosa da passagem das boiadas, das tropas de cavalos e dos carros de boi carregados de algodão. “Era uma coisa maravilhosa, porque a gente não sabia o que era ladrão, o que era briga (...) e todos se queriam bem”.

O armazém ainda pertence à dona Palmira e sua família, mas está arrendado a Francisco Pietarzewicz, novato na região e pouco sabedor das coisas do passado do lugar. Indagada sobre as diferenças entre viver no Buru e viver na cidade, ela finaliza, num tom decidido: “Se eu ainda tivesse o meu velho, não saía de lá...”


O passado, nunca mais

A reportagem do Cidade foi encontrar um velho e fiel morador do lugar, no Sítio Ribeiro, ao lado do caminho entre o Buru de Baixo e o Buru do Meio. Antonio de Oliveira, que apesar desse sobrenome, é conhecido por todos como Ribeiro, nasceu e vive no Buru há 69 anos. E esclarece que seus familiares lá marcam presença há mais de 100 anos.

A voz de Antonio Ribeiro faz coro a muitos outros antigos moradores para, pacientemente, puxar histórias e “causos” e se lembrar das rodas de prosa na venda do Santinon, até às “tantas da noite”. Ele confirma a fama dos bailes e de bons violeiros, como o famoso Antonio Boaventura, o Antonio Café que mais tarde ganharia renome como benzedor.

Ribeiro se recorda da caça farta nas matas da redondeza, com abundância de pacas, veados, capivaras. Dos seus tempos de menino e rapaz, guarda a lembrança dos inúmeros imigrantes que somente falavam o idioma italiano, das histórias dos fantasmas e assombrações, embora não tenha visto nada: “ver, não vi”. Mas histórias havia, assim como os tristes casos do tempo da escravidão, que eram narrados à sua mãe pela estimada negra Nhá Laura, moradora do Itapururuca.

Diante das mudanças trazidas pelo tempo e pelo progresso, o ferrenho buruense diz qual é sua mais cara recordação: “O que eu mais lembro é o ribeirão cheio de peixe, de cardume de curimbatás. Isso, nem eu, nem meus filhos vamos ver de novo. Hoje não tem mais peixe; só mau-cheiro”. O homem toma um gole de café e diz, mansamente, que compreende as transformações do tempo. Apesar de tudo, a última frase deixa escapar um lamento: “Tenho vontade de ir para outro lugar, onde eu sinta o que eu sentia aqui, naquele tempo”.


O alfabeto e a fé

A paisagem sentimental do Buru compõe-se de muitos nomes e pequenos lugares. Nomes como os dos ribeirões Retiro e Buru, outrora piscosos, que cortam aquelas terras. Nomes como o do pequeno morro do Itapururuca, atrás da capela, onde estavam as terras obtidas por famílias negras, logo depois da Abolição. O nome refere-se ao abundante cascalho no lugar, querendo indicar “pedras pururucas”, ou seja, pedrisco miúdo.

Impossível, mesmo, é falar do Buru sem mencionar sua padroeira, Nossa Senhora das Neves, e a capela erigida em seu louvor. Na verdade, a capela original ficava na “baixada”, cerca de duzentos metros aquém da atual, e foi demolida quando da construção da nova. Ocorreu, contudo, que o proprietário do sítio onde a antiga capela se encontrava acabou reconstruindo uma outra, bem menor, cujas ruínas ainda sobrevivem, e tudo segundo recomendação que lhe foi dada, de que sua criação de galinhas somente se livraria de uma terrível peste que a assolava, quando ele refizesse o pequeno templo.


A pequena capela reconstruída.

Já a atual capela teve seu nascimento a partir de uma doação feita à paróquia de Nossa Senhora do Monte Serrat, de 3 mil metros quadrados, por Maximiliano Rocchi, em 1936. No ano seguinte seria lançada a pedra fundamental, e os leilões e quermesses garantiriam o dinheiro necessário para que a construção se desse em 11/12/1938.


A atual capela de N. S. das Neves (foto de 2005).

Só não se consegue precisar quando teve início a devoção a Nossa Senhora das Neves, o que se reporta ao século passado. É certo que sua adoção pelo povo do Buru deveu-se à forte concentração de famílias italianas no local. Como é infalível, também, a grande festa do Bairro em louvor a sua padroeira, repetida a cada ano.

A mesma família Rocchi se incumbiu de doar, também, o terreno para a construção de uma escola, ainda em fins da década de 1920. O pequeno e acanhado prédio está, hoje, nos fundos da nova escola, inaugurada em 1970.


A antiga escola (foto de 2005).

A marcha dos tempos

Poucos setores do município receberam com tanta rapidez o golpe dos novos tempos, como o Buru e suas redondezas. A cidade avançou seus limites e fez cair, em pouco mais de uma década, o que restava da imagem de isolamento do lugar. A imagem que, um dia, gerou o dito popular “Caipira do Buru, sapato branco e meia azul”. Onde, outrora, reinava a terrível subida do Ajudante, hoje está a Avenida Getúlio Vargas, ladeada pelo novo hospital. Adiante, um trevo rodoviário substituiu a encruzilhada que permitia escolher entre o caminho para Capivari e Buru de Baixo, e o outro, para Cardeal, Elias Fausto e Buru do Meio. Vieram modernas empresas, como a IPC, a Calfat e a Isa Avícola.

Os sitiantes agora convivem com os condomínios fechados e loteamentos, como o Picollo Paese, o Zuleika Jabour, o Arquiodicesano e novos bairros, como o Jardim Saltense, a Vila Norma e o São Judas Tadeu que, aos poucos, vão eliminando as lacunas entre a cidade e o Buru. As boiadas, os carros de boi, as charretes e carroças foram substituídas por automóveis e ônibus urbanos, que contam com o conforto do asfalto até a frente da escola. Ali, um telefone público dá conta aos moradores de que o mundo inteiro está bem perto de seu antigo e pequeno refúgio.

Restam os caminhos de terra, resta ainda a gente simples, a modesta lavoura e os mais antigos, que vez por outra se permitem contar histórias e matar a saudade do passado. Saudade do bom e velho Buru, da Senhora das Neves.



A origem do nome


As razões para o nome Buru não constam em nenhuma publicação sobre a história saltense. E, também, não era explicada por nenhum cidadão. Porém, a palavra é indígena e vem sendo empregada há séculos, sem dúvida.


No livro Araritaguaba: o Porto Feliz, o professor Jonas Soares de Souza incluiu um texto já antigo, do historiador Afonso de Taunay, a título de explicar como eram feitas as canoas e os batelões utilizados pelos bandeirantes em suas viagens pelo Tietê, a caminho de Cuiabá. Num trecho do artigo, Taunay falava da procedência das melhores árvores (ximbó, tamboril e peroba) nas quais as embarcações eram cavadas: “(...) contou-nos João Evangelista Pompeu de Campos, saudoso amigo, rico repertório vivo de coisas tradicionais que a mata do Mburu, perto de Indaiatuba, era célebre pela corpulência das árvores. Nela avultavam gigantescas perobeiras. (...) Diz Cardoso de Abreu que, sobretudo perto de Capivari, se adensavam as árvores maiores da floresta admirável daquela zona”.


Portanto, tudo que o tempo fez foi eliminar o sotaque bugre da palavra Mburu, incluindo para sempre na fala das gerações, a forma mais suave, Buru.

6 comentários:

Michel F.M. disse...

História Pura.

Muito Bom,

Parabéns.

Lazaro disse...

Olá,

gostaria de saber se você sabe informar se o Sr Antonio Cafe, citado no texto, ainda é vivo e se ele ainda atende na cidade de Salto SP>

Unknown disse...

eu estudo nessa escola
é muito legal

Unknown disse...

eu estudo nessa escola
é muito legal

Anônimo disse...

Nossa me lembrei muito de minha infância que passei no buru, e sou um dos decendentes da familia ferraz. Gostei muito de ter relembrado parabéns pelo blog!!!

Unknown disse...

Meu bisavô o italiano Francesco Bergamo era dono das terras do Buru, que iam até cardeal. Era dono também da fazenda Espirito santo com sede no centro de Cardeal. Ultimamente pertencia ao Ceccon casado com a dona Nenê Bergamo. Eles mudaram a sede da fazenda mais próximo de indaiatuba.

Ouça o hino da cidade, "Salto Canção", na gravação de 1966