1 de fevereiro de 2008

A carta do maestro

Deparei-me um dia desses com uma carta do maestro Henrique Castellari, que dá nome ao Conservatório local, destinada ao então Interventor do Estado de São Paulo, Adhemar de Barros. Data a carta de 30 de abril de 1940 e, ao que me parece, trata-se do rascunho da que muito provavelmente foi remetida. Dizia o maestro, no texto por ele chamado de “memorial”, que a finalidade daqueles escritos era “impetrar (...) uma proteção valiosa para a arte musical em Salto”. Nesse intuito de obter o amparo de uma autoridade, o maestro Castellari iniciava seu memorial pelo histórico da Banda Musical Saltense, que abaixo transcrevo:

A Banda Musical Saltense foi fundada no ano de 1878, por um grupo de pessoas de boa vontade e vocação musical, quando Salto era ainda uma pequena povoação, com desenvolvimento incipiente. Foram seus fundadores Joaquim Florindo, Romão Ribas, João Manquinho, João de Assis e outros, todos já falecidos. Depois de 1880, mais ou menos, o benemérito saltense, Dr. Francisco de Barros Júnior, já falecido, ex-Deputado Estadual, proprietário de uma Fábrica de Tecidos nesta cidade, avocou-se a direção da referida Banda Musical. Assim, forneceu-lhe instrumental novo, músicas novas, mantendo o maestro João Narciso do Amaral (grande músico ituano), dando trabalho aos músicos em seu estabelecimento industrial [indício do mecenato praticado por Barros Júnior] e correndo todas as demais despesas da Banda por sua conta. Mais tarde, [em] 1890, referido industrial, vendendo sua indústria, afastou-se da direção da Banda, confiando todo o instrumental e pertences da mesma à guarda da Matriz local, (...).
Dessa época em diante, a Banda ficou sem regente, sem recursos financeiros, indo para a frente por dedicação dos músicos Romão Ribas e João Francisco das Chagas, ambos já falecidos. Em 1902, como músico que era dessa Corporação, assumi a regência e chefia, coadjuvado pelos meus companheiros e músicos, senhores Isaac de Moura Campos, Silvestre Leal Nunes, Joaquim Florindo – todos falecidos, e Antonio Pereira de Oliveira, ainda existente. A Banda, nessa época, achava-se em condições precárias (...) já por falta de instrumentos, etc. Afinal, com muito esforço e boa vontade, consegui reorganizá-la, (...). Hoje, ela é composta de mais de 50 músicos, possui boa sede sita à rua Dr. Barros Júnior, conta com mais de 70 instrumentos e pertences musicais, todos em bom estado de conservação, tem um grande repertório de músicas clássicas, um bom fardamento de brim branco (brim esse doado pela Fábrica Brasital, desta cidade) para 62 músicos, (...), possui Caixa Beneficente para socorrer os músicos necessitados, aula de música, para formar novos elementos para a Corporação (medida essa de muito acerto, sem o que a Banda extinguir-se-ia). O terreno em que a sede foi construída foi adquirido por escritura pública, em nome da Banda, não podendo a sede ser vendida ou hipotecada e, em caso de issolução da Sociedade, os músicos existentes no ato tomarão sob seu cuidado, de acordo com as autoridades locais, os bens existentes, sendo que os músicos remanescentes poderão formar outra Banda, sempre porém com o mesmo nome: “Banda Musical Saltense”.

O “memorial” segue ainda com um balanço financeiro e um “histórico artístico”, bem como um breve relato sobre as “dificuldades para sua manutenção”. Necessidades pessoais dos músicos, sujeitos simples no mais das vezes, relacionadas a dinâmicas sociais e econômicas do momento, afetavam a atividade artística, e assim o maestro expressa a situação: “(...) a grande dificuldade é quando por desempregado, um bom músico se vê na contingência de procurar outra localidade – a Banda tem que arranjar um seu substituto na escola [que a própria Banda mantinha], custando no entanto a preencher com eficiência a vaga verificada”. Por essas e outras situações que relata, o maestro solicitava, após certo rodeio, “um estímulo oficial, por parte dos Poderes constituídos, mesmo um auxílio financeiro às bandas de música”, e previa que, caso isso não ocorresse, elas iriam “paulatinamente se extinguindo...”.

A carta, embora não pretenda isso, é documento de uma época. Castellari, um dos atores principais da arte musical do período, assim a encerra: “Creio assim (...) ter exposto o meu desejo, com toda a fidelidade, pois não viso interesse individual, mas apenas o bem artístico e para não deixar perecer a Banda (...), à qual dediquei mais da metade de minha existência (...).”

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Ouça o hino da cidade, "Salto Canção", na gravação de 1966