Considera-se como a data da
fundação de Salto o dia da bênção da capela dedicada a Nossa Senhora do Monte
Serrat, ocorrida em 16 de junho de 1698. E o fundador, o capitão Antonio Vieira
Tavares - então proprietário do sítio Cachoeira, cujas terras correspondem hoje
a parte da cidade de Salto. Antes de falecer, Tavares fez a doação do sítio
Cachoeira à capela por ele construída. E na escritura de doação, datada de
1700, fez constar que era vontade dele e de sua mulher, Maria Leite, que a
capela permanecesse para sempre naquele local, onde hoje está a Igreja Matriz,
sob a mesma invocação que a capela pioneira. À época, quem observasse o
horizonte a partir daquele ponto teria vista privilegiada para a cachoeira –
algo que se tornou impossível com a instalação das primeiras tecelagens, a
partir de 1875.
O
trabalho de recuperação da memória do fundador de Salto coube a Luiz Castellari [1], autodidata, autor de História de Salto,
que empreendeu competente pesquisa, decifrando manuscritos do final do século
XVII e início do século XVIII. Antes disso, pouco se sabia sobre a ocupação
pioneira das terras à direita do Ytu
Guaçu – o salto d’água no rio Tietê.
Nascido
em meados do século XVII, Tavares vivia no sítio Cachoeira desde
aproximadamente 1690, com sua mulher, alguns familiares e escravos. A
propriedade fora obtida por duas escrituras de datas de cartas de sesmarias –
uma forma existente, no Brasil colonial, para se tornar proprietário de terras.
Para assistir missa aos domingos, na vila de Itu, Tavares e seus familiares
tinham que atravessar o rio Tietê – e não há registro da existência de uma
ponte ligando as duas margens nessa época. Além disso, nosso fundador alegava
sofrer de grande moléstia – o que dificultava ainda mais o seu deslocamento.
Com
base nesses argumentos, somados à sua devoção religiosa, solicitou formalmente
às autoridades católicas que o autorizassem a construir em seu sítio uma capela
dedicada à Senhora do Monte Serrat. Para tanto, pediu autorização também para
usar os bens móveis de uma capela fundada por seu pai, Diogo da Costa Tavares [2], localizada em Cotia, hoje cidade da Grande São Paulo. A licença para construir
a capela no sítio Cachoeira foi concedida em fins de 1696 e, em 16 de junho de
1698, o padre Felipe de Campos, a benzeu.
Passados
dois anos e meio da bênção da capela, Tavares e sua mulher, Maria Leite,
firmaram uma escritura de doação do sítio Cachoeira à capela de Nossa Senhora
do Monte Serrat recém fundada, mas impunham algumas condições. Além da já
mencionada localização da capela, que não poderia ser alterada, especificaram
que a doação só seria consumada por falecimento de ambos, marido e mulher.
Doariam ainda as peças de gentio da terra
– como eram chamados os escravos índios – e demais escravos de origem africana.
A casa na qual residiam também estaria entre os bens doados, excetuando-se
apenas dinheiro, ouro, prata, cavalos, armas e roupa branca. E é sobre a
localização dessa casa que paira um grande mistério. Em que ponto do sítio
Cachoeira ela estaria localizada? Possivelmente próxima de onde se construiu a
capela, embora não exista hoje nenhum vestígio material nem documento escrito
que nos dê qualquer indicação. Vale lembrar que a capela construída por Tavares
resistiu até 1928, quando foi demolida para que se construísse em seu local a
atual Igreja Matriz, concluída em 1936.
Quando
chegou ao sítio Cachoeira, Tavares era casado com Maria Leite, sua primeira
esposa, filha de Paschoal Leite Furtado e Mécia da Cunha. Com ela, falecida em
3 de maio de 1704, não teve filhos. Cerca de um ano depois do falecimento da
primeira esposa, o fundador de Salto casou-se com Josefa de Almeida, filha de
Manoel Antunes de Carvalho e Ana de Almeida, do Rio de Janeiro. Desse
casamento, nasceram: Antonio, que ficaria conhecido por frei Antonio do Monte
Carmelo; Braz de Carvalho Paes; Manoel, que se tornou irmão leigo da Ordem do
Carmo; Francisco, que foi mestre em Filosofia; e Maria, que se casou com um
sargento de milícias de Itu.
Antonio
Vieira Tavares faleceu em 4 de dezembro de 1712, sendo sepultado na capela mor
da Igreja dos Franciscanos, em Itu. Em seu testamento, nomeou seu filho Braz
Carvalho Paes como administrador da capela que ele havia construído em suas terras,
assim como declarou deixar todos os seus bens, inclusive o próprio sítio
Cachoeira, à referida capela. Seus restos mortais foram transferidos para Salto
em 21 de junho de 1981 e desde então se encontram no interior da capela
existente no Monumento à Padroeira, inaugurado no ano anterior, no bairro hoje
denominado Jardim Itaguaçu.
Embora
seja costume referir-se a Salto como “terra de Tavares”, em alguns círculos
saltenses, é notório que não foram ele e sua gente os primeiros a ocupar a área
onde hoje se localiza a cidade de Salto, que abrigava, ao início da colonização
portuguesa na América, aldeamentos dos índios guaianás (ou guaianazes), do
grupo Tupi-Guarani. Consta que a aldeia aqui localizada chamava-se Paraná-Ytu. Foram esses índios que deram
à cachoeira o nome de Ytu Guaçu, que
significa Salto Grande em língua nativa. Assim, fica claro que esta cachoeira
acabou dando nome a duas cidades: a Salto (em português) e à vizinha Itu (em
tupi-guarani).
Há
registros que mencionam o ataque que, em 1532, os indígenas empreenderam contra
Martim Afonso de Souza – primeiro donatário da Capitania de São Vicente. Dentre
os líderes guerreiros, menciona-se o Cacique
de Ytu. Sendo essa ocorrência de época em que a vila de Itu ainda não
existia, acredita-se que seja uma referência ao chefe dos índios que viviam
pelas terras da atual Salto. O Museu da Cidade, inclusive, exibe urnas
funerárias, pontas de flechas e outros fragmentos de cerâmica recolhidos nos
arredores, que testemunham essa presença. Esses indígenas, assim como outros
das margens do Tietê, foram repelidos ou aprisionados nas investidas das
primeiras bandeiras paulistas, que os levaram para abastecer de mão-de-obra as
roças nas vilas do planalto.
A certidão de nascimento de Salto: o pedido de Tavares para construir a
capela, no ano de 1696.
Transcrição
preservando-se a grafia original:
Título de erecção e instituição da Capella de Nossa Senhora do Monserrate
sita no termo desta villa no Sitio chamado Salto, e Cachueyra.
Translado da Provisão de ereção
Muito Reverendo
Senhor Doutor Visitador Geral Diz Antonio Vieyra Tavares morador em avilla de
Ytú, que ele supp.te tem o sitio de sua habitação na paragem chamada Cachueyra,
oqual fica distante da Villa húa Legoa, etem húa passagem de Rio, comque sua familia
não pode acudir a Villa para ouvir Missa aos Domingos, edias Santos, e elle
supp.te sofrer com grande molestia epor estas razoens, Com tão bem por sua
devoção quer erigir no dito Sitio húa Igrejia com seu Adro com a invocação de
nossa Senhora do Monserrate, para cuja fabrica aplicada os bens moveis da
Capella da Acutia que por ordem de Vm.ce selhe entregarão por ser elle supp.te
sucessor Legitimo do Fundador que (...) lhe faça mercê Conceder licença para
erigir adita Igreja na sobredita paragem com seu Adro; assim mas de comissão do
Reverendo Vigario para benzer como estiver feita.
________________
[1] Nascido em Salto em 1901, Luiz Castellari era filho do maestro Henrique Castellari, que dá nome ao Conservatório Musical de Salto. Luiz faleceu precocemente, aos 47 anos. Foi um de seus filhos quem doou ao Museu da Cidade de Salto, nos anos 1990, os originais de seu livro História de Salto e da pesquisa original, com todas as notas tomadas por seu pai, em diversos arquivos públicos e eclesiásticos. Tais textos, embora publicados apenas em 1971, por iniciativa do então prefeito de Salto, Jesuíno Ruy, foram concluídos em 1942. Luiz muito se esforçou por publicar sua pesquisa à época, sem, contudo, obter sucesso.
[2] Sobre o pai do fundador de Salto, um português, sabe-se que foi casado duas vezes, sendo a segunda com Catarina de Lemos, e que morou muito tempo em Cotia, onde faleceu em 1659. Participou, junto com o lendário irmão Antonio Raposo Tavares, de expedições visando expulsar os holandeses de Pernambuco e da Bahia, entre 1639 e 1642. É de se imaginar, portanto, que tenha se dedicado ao aprisionamento de índios para o trabalho escravo nos engenhos, como o irmão. Já Fernão Vieira Tavares, avô paterno do fundador de Salto, era português e chegou ao Brasil em 1618, tornando-se capitão-mor da capitania de São Vicente em 1622.
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