Texto de Valderez Antonio Bergamo Silva, publicado originalmente no jornal Taperá, em 2006.
MONSENHOR
Era o meu
modelo de padre. Porreta e da pá-virada.
Certa vez, precisei
telefonar-lhe para combinar detalhes sobre uma cerimônia da Semana Santa em
praça pública. O carnaval tinha passado fazia poucas semanas e eu, na época
dirigente de cultura da cidade, havia mandado decorar a rua dos desfiles com
grandes painéis que evocavam os orixás do candomblé, em homenagem aos cem anos
da abolição da escravidão e às raízes africanas do povo brasileiro. Lembrei,
depois, que o padre talvez não tivesse gostado muito e, diplomaticamente,
expliquei por que era uma referência cultural legítima, uma homenagem a uma das
vertentes da formação brasileira, coisa e tal. Disse que ele tinha “um coração compreensivo” e que certamente tinha entendido a razão dos
enormes desenhos de Iemanjá, Iansã, Ogum, Oxalá, pairando no centro da cidade.
Ele pegou o gancho da minha fala e me devolveu a espetada pelo telefone:
- Claro, o coração do padre é tão
compreensivo que vira terreiro de
macumba.
Esse homem
direto, franco, freqüentemente rude, foi Mário Negro, o padre da minha
infância, o monsenhor de minha cidade natal, o amigo querido que fui a
sepultar, dias atrás.
Quando chegou
à cidade, no final dos anos 1960, criou o hábito que, em seu funeral, todos os
de minha geração cuidavam de lembrar. Nas manhãs de domingo tomava de um
tambor, um bumbo, e saía pelas ruas da cidade arrebanhando a garotada para a
chamada Missa das Crianças. Depois de percorrer ruas a fio, o cortejo – que
lembrava o flautista de Hamelin, da lenda medieval do homem que hipnotizava
meninos com o toque da flauta – chegava à frente da Igreja Matriz. Fazia,
então, as crianças seguirem em fila, pisando criteriosamente uma fita pregada
no chão, até se acomodarem nos bancos para assistirem à missa. Ficou também, na
memória da cidade, como o homem que, num descuido, despencou do campanário da
igreja, estatelando-se no duro chão de pedra do adro. E sobreviveu. Homem de
peripécias curiosas, houve o episódio em que viu-se enganado por uma trupe de
cinema, que o convenceu a fazer uma ponta como ator, celebrando um casamento
numa dada cena do filme que se rodava na cidade. Só depois da estréia, a
pequena cidade – e o padre, inocente – viram tratar-se de um filme pornográfico
dos que surgiam na época.
Haverá, certamente,
quem prefira lembrá-lo como o homem turrão e genioso, que bronqueou com beatas,
implicou com isto e aquilo, brigou com o prefeito, desafiou até o bispo. Eu o
vejo como fruto perfeito da Igreja, naquilo que ela efetivamente é: feita de homens; não de anjos. A
Igreja militante e peregrina, santa justamente porque só se torna possível à
custa de aprendizados, marchas, erros, acertos, martírios e sofrido exercício
da fé. O sacerdote octogenário que minha cidade perdeu foi o homem sabedor dos
limites do homem. Aquele, bem-humorado, que ministrava uma palestra em minha
escola, quando o conclave de cardeais se reunia para escolher o sucessor do
recém-falecido papa Paulo VI. Mário Negro explicava aos jovens que o Espírito
Santo é quem escolhe o papa, e que, em tese, não precisava ser um cardeal, poderia
ser qualquer um, até ele. Quando, com deliciosa malícia no sorriso, acrescentou: -
Esse risco, porém, não existe, porque Deus não comete besteiras.
Mário, que me
lembrou Pedro, o pescador, como eu quis dizer na oração fúnebre junto a sua
sepultura. O Pedro também teimoso, carregado de dúvidas e erros, de humanidade
profunda, a quem Cristo perguntou por três vezes: Pedro, tu me amas ? E,
ao ouvir a resposta positiva do apóstolo, então, por três vezes pediu: - Apascenta as minhas ovelhas.
As ovelhas o
padre de minha infância apascentou daquele modo, arrebanhando-as meninas pelas
ruas da cidade. Ou comovendo-se até às lágrimas, numa voz soluçante de homem,
quando se inflamava na pregação da Descida da Cruz. Cuidou do seu rebanho
quando bradava, numa empolgação inigualável, acolhendo nas escadarias da
igreja, por mais de trinta anos, a procissão e o andor da Senhora do Monte
Serrat, padroeira da terra onde foi missionário infatigável. E ainda na
infalível disposição em atender os moribundos, em encomendar as almas segundo
seu credo, em consolar as famílias chorosas, em ter oficiado missa mesmo na
manhã do seu último dia de vida. Combateu o bom combate, a que alude o apóstolo
Paulo, guardou a sua fé, justificou os seus dias, atendeu, em meio aos seus
limites de homem, ao pedido que o Nazareno fez ao pescador.
Num de seus
últimos gracejos para mim, poucos meses atrás, apareceu numa chácara onde eu me
encontrava, conversando com uma amiga que tínhamos em comum. Perguntei por onde
havia chegado, que não ouvira barulho de automóvel, apenas o vira emergir de trás
dos arbustos do jardim. Ele, sem perder a anedota, me esclareceu: -
Cheguei voando. Os padres, depois que fazem oitenta anos, começam a virar
anjos.
Para mim, que
soube amá-lo, sua imagem, sim, vai-se voando, na minha resignada tristeza,
levada na batida do bumbo que ouvia criança, nas cantigas marianas, nos acordes
da banda, nas pancadas do sino. Vai-se a figura polêmica. Vai-se o pastor
incansável. O amigo dos meus dias de homem. O padre dos meus tempos de menino.
Monsenhor Mário Negro (1922-2006), que foi o pároco responsável pela Igreja Matriz de Nossa Senhora do Monte Serrat, em Salto/SP, durante quase trinta anos.
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