Henrique Castellari em São Paulo, 1922.
O programa para 25 de fevereiro de 1923 anunciava, para o Campo do Ítalo [Futebol Clube] “profusamente adornado e iluminado”, às 7 horas da noite em ponto, o “grande concerto” que seria promovido pela Banda Musical Saltense. Estariam presentes na ocasião “os maestros Capitão Joaquim Antão Fernandes, da Banda da Força Pública do Estado, e Savino de Benedictis, do Conservatório Dramático Musical de São Paulo, autor do poema “Centenário”; maestros do interior e representantes da imprensa paulistana e da vizinha cidade de Itu”. Tudo isso pois, pela primeira vez, seria executada “a peça descritiva, da lavra do maestro Henrique Castellari [1880-1951], sobre costumes regionais, e de caráter religioso, intitulada: Uma Festa de São João na Roça”. Informava-se ainda que tomariam “parte em sua execução mais de 100 figuras”, sendo os fogos de artifício, confeccionados “pelo hábil pirotécnico Snr. Urbano Pedroso da Silva”, “queimados pelo Snr. João Fernandes”.
Fragmento do programa no qual são nomeadas as 27 partes integrantes da peça.
Noutro panfleto, espécie de divulgação do trabalho do maestro Castellari, no que chama de “origem da composição”, a peça é descrita de forma bastante simples e coloquial – num esforço em justificar e sintetizar em poucas linhas sua criação, talvez. Abaixo, segue a transcrição desse panfleto, na qual tão somente atualizamos a ortografia das palavras:
“O que é a peça Uma Festa de São João na Roça:
Festa de São João, na roça: Quanta poesia, quanta recordação saudosa nos acode em tropel à alma atribulada. É a festa por excelência feita da simplicidade rústica dos campos, cheia de poesia bucólica e que por isso mesmo mais nos encanta nesta quadra de esnobismo balofo. Nesse sentido, rememorando isso tudo é que foi feita a peça UMA FESTA DE SÃO JOÃO NA ROÇA. O seu tema é o seguinte: Na fazenda do Capitão X. há uma grande festa de São João. Para maior brilho, duas bandas foram contratadas. O Maestro reúne os músicos da 1ª Banda e partem rumo da estação [sic] e ali, à espera da saída, para matar o tempo, a Banda soluça uma ‘Valsa de espera’, música terna, chorosa, que fala à alma, um suspiro de amor, como aliás são todas as valsas. E o trem chega, silvando a locomotiva, entrechocando engrenagens, válvulas abertas... um barulho ensurdecedor, apitos do chefe, gritos dos passageiros, um charivari, tudo imitado por músicos e instrumentos. Súbito, notas alegres: é um ‘Dobrado’ e o trem parte. Na estação próxima outra banda espera. Chega o trem. O seu ruído característico, estrugem foguetes e a outra banda irrompe numa fantasia alegre, saudando a colega. Desembarque do trem e rumo da fazenda em troles... guizos e relhos, imitados por instrumentos se ouvem em sons estrídulos. Um sexteto, ‘o sexteto da farra’, faz ouvir uma mazurca e ao longe o eco sonoro vai reboando pelas quebradas. Eis a fazenda: Foguetes pipocam, cães que latem, vivas que estrugem, entusiasmo, delírio e a Banda ingressa na casa do festeiro. A 1ª Banda toca uma música lenta, e bebidas generosas escaldam os cérebros, o entusiasmo cresce e a Banda executa um repenicado tango, bisado a pedido. À tardinha, o maestro, grato ao festeiro, organiza um concerto..., diversos trechos musicais se ouvem, chovendo palmas, campeando a alegria e em meio à hilaridade geral o Géca [sic], cofiando os ralos fios de barba, exclama sincero : ÊTA MUSGA BOA, MEO DEOS, SINSINHÔ: ISTO QUE É MUSGA.
Pouco depois a tradicional usança do levantamento do mastro com a Bandeira de S. João. E piedosamente a romagem sai da casa do festeiro e ali no terreiro alteia a imagem d’aquele que trará felicidade à fazenda, o divino São João. E por entre fogos de bengala a 4 cores, repiques de sino, foguetes e toque de música, surge a imagem do ‘Pregoeiro do Jordão’! Acaba a cerimônia e o ‘sanfoneiro da zona’ chora as suas mágoas... é a primeira banda que com instrumentos caracterizam [sic] o ‘típico’ instrumento.
Chega a noite e com ela a reza. A banda se ouve imitando o órgão da capela na ladainha e a outra representa o povo... canto chão, amém, ladainha, tudo pelos instrumentos... Finda a reza... Um canto dolente e triste: É o cururu, o desafio dos violeiros, a viola geme, e, pedida licença ao Santo e coberto ele com um pano, o povo folga, diverte... é o rodeio, o cateretê, o racha-pé, o bate-mão e numas toadas dolentes umas 60 pessoas trazem à baila os descantes de São João. E o folguedo vai no auge... nisso o galo canta, é madrugada, o folguedo cessa... é hora de lavar São João. E a piedosa usança, em que muita moça esperou ver refletido na água em que se banhou o santo, o retrato de seu futuro FUTURO, começa então longa fila. São João à frente, procissão solene, à luz de candeias, lá vão em demanda do rio. A Banda entoa a marcha religiosa, foguetes, morteiros espoucam e sinos repicam. Súbito uma descarga de bateria e a Banda irrompe num dobrado 6/8 alegro. É a procissão que entra... e vivas estrugem e salvas e a velha Quitéria num arroubo de piedade dá um viva ao Santo. Voltam à casa, prosseguem as danças. O festeiro dá sinal, os folguedos cessam, a festa se acaba e os músicos regressam... guizos, estalos de relho e os troles sulcam a estrada rumo da estação, ao som de uma buliçosa schottischs. E o trem parte, pressão de vapor, chio de válvula, apitos, e uma valsa ‘apaixonada’: a valsa da saudade denota a recordação da festa. E o trem chega e uma música alegre, um ‘até a vista’ vem relembrar os doces momentos da tradicional ‘Festa de São João na Roça’.
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